segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Descartes e a questão mente-corpo


Matéria

A maioria das terapias integrativas, muito em voga nos dias de hoje, investiga nas perturbações da alma as causas do surgimento das doenças do corpo. Pressupõe-se que os sintomas patológicos do organismo seriam apenas a manifestação ou a expressão de distúrbios que se encontram no domínio da mente, da alma e do espírito. Essas terapias estão baseadas em uma interação nada simples entre corpo e alma. Muitos filósofos se dedicaram a resolver essa questão desafiadora. O filósofo francês René Descartes (1596-1640) não foi apenas um deles, seu trabalho influenciou profundamente a filosofia e a ciência da sociedade contemporânea.
Descartes postulava que, além de Deus, o universo era constituído por outras duas substâncias. Uma delas era a res extensa (do latim, “coisa extensa”). A matéria que conhecemos e, mais especificamente, o corpo seriam modificações dessa substância. Assim, o corpo pode ser medido e calculado, pois possui extensão. Outra característica importante do corpo é o movimento: o sangue circula, os músculos se flexionam e se estendem. Por fim, como substância extensa, o corpo não pensa. O pensamento é uma operação que nunca pode ser atribuída ao corpo. Para Descartes, onde não houver alma, não há pensamento.

Pensamento e dualismo

A outra substância era a res cogitans (do latim, “coisa pensante” ou alma). A alma foi caracterizada por Descartes como algo imaterial e, portanto, sem extensão. Por esse motivo, a largura, o comprimento e a profundidade são medidas que não podem ser aplicadas à alma. Ela também foi caracterizada como uma substância pensante, mas, ao contrário do que frequentemente se concebe nos dias de hoje, pensar não era somente raciocinar. Pensar também é ser afetado de alegria, sofrer com uma frustração ou desejar realizar uma atividade para adquirir prazer. A divisão ou dicotomia entre alma e corpo, elaborada por Descartes, é conhecida como dualismo cartesiano.
Essa teoria não se preocupou apenas em definir a substância pensante e a substância extensa, mas também em explicar como uma age sobre a outra. Como é possível que a alma, substância imaterial e sem uma extensão espacial, tenha qualquer poder sobre o corpo, constituído de matéria e com contornos espaciais claramente delimitados? Descartes também questionava o seguinte: se o corpo é matéria, como pode ele afetar a alma, que não possui contornos espaciais claramente definidos? Sendo duas substâncias totalmente diferentes, como a alma e o corpo podem interagir entre si? Segundo Descartes, a alma está vinculada ao corpo de dois modos.

Alma, corpo e glândula pineal

Em primeiro lugar, por não possuir extensão (vimos que a alma não é material), ela está unida ao corpo todo e não apenas a alguma região em particular. Em segundo lugar, de acordo com Descartes, a alma exerce suas funções, mais particularmente por meio de uma glândula do cérebro: a glândula pineal, órgão intermediário que torna possível a interação entre a alma e o corpo. Duas propriedades desse órgão explicariam sua função de intermediário entre a alma e o corpo: unidade e mobilidade. Segundo Descartes, ela seria um única e capaz de reunir as percepções “duplas” provenientes dos órgãos dos sentidos. As imagens visualizadas pelos dois olhos ou os sons percebidos pelos dois ouvidos, por exemplo, encontrariam sua unidade nessa glândula.
Porém, ela também é, segundo Descartes, um órgão móvel, o que a torna capaz de afetar e de ser afetada pelos espíritos animais. Para o filósofo, os espíritos animais são elementos orgânicos responsáveis pela transmissão de movimentos e de sensações, algo equivalente aos impulsos neuroelétricos nos dias de hoje. A interação entre alma e corpo, proposta pelo dualismo cartesiano, entretanto, apresenta um grave problema. Sabemos o que ocorre no caminho que vai do mundo exterior até os sentidos da visão e desses até a glândula pineal. Os objetos exteriores afetam os órgãos dos sentidos, que transmitem imagens até a glândula pineal por meio dos espíritos animais. No entanto, continuamos sem saber como a alma, substância imaterial e sem extensão, pode perceber imagens materiais projetadas na glândula pineal. Como se realiza esse “salto” entre a alma e a glândula pineal, órgão do corpo humano?

Ciência e esoterismo

Segundo problema. De acordo com Descartes, a alma “percebe” as imagens projetadas na glândula pineal. Mesmo que seja possível que uma substância pensante (alma) perceba imagens projetadas em uma substância material (glândula pineal), não sabemos quais são os processos que ocorrem no interior da alma para que as imagens sejam percebidas por ela. Atualmente, algumas leituras do que Descartes escreveu sobre a glândula pineal descambam para o esoterismo. Porém, também já se sabe hoje que ela, nos vertebrados, é fonte de melatonina, hormônio derivado do triptofano (C11H12N2O2), aminoácido cristalino que regula o ciclo de sono. A produção desse hormônio pela glândula pineal está diretamente ligada à ausência de luz, ou seja, ela só acontece quando fechamos os olhos. Não acreditamos que, com essas observações, a questão da interação entre a alma e o corpo esteja plenamente resolvida. Ao contrário, depois de Descartes, muitos outros filósofos e cientistas se debruçaram sobre esse tema, tão instigante e tão complexo. Nossa intenção é simplesmente apontar para a riqueza do debate em torno do dualismo cartesiano.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Identidade gay e a tolerância

   

Nesta época de luta pelos direitos dos homossexuais, em que tantas conquistas se fazem notar, a ponto dos preconceitos serem considerados antiquados e muitos atestarem uma evolução no que tange ao olhar da sociedade em relação aos gays, cabe uma pergunta delicada: vencidos os embates externos (contra preconceituosos, homofóbicos e dogmáticos), o que dizer então dos inimigos internos? A luta dos homossexuais seria apenas contra entidades "lá fora"? Conquistaram os militantes uma assim dita "identidade gay"? Muitas opiniões sobre este assunto são possíveis. E o que nos diriam estes que são dois dos mais importantes filósofos franceses da pós-modernidade: Michel Foucault e Gilles Deleuze?

    A partir das perspectivas assimiladas ao longo da obra foucaultianodeleuziana, podemos também dizer, conforme explica o antropólogo Felipe Areda, que ninguém "nasce" homem, mas sim que todos nos tornamos homens, numa busca constante. A dita virilidade masculina representa o investimento numa rede relacional: busca- se o reconhecimento da masculinidade. Esta virilidade é uma ética, uma constante inquietude de si. Ao contrário do que pregam alguns militantes gays, o sexo não nasce feito. Nem mesmo "nasce-se gay", na medida em que a singularidade homossexual, como toda e qualquer singularidade humana, demanda contínua construção, desconstrução, reconstrução. Não se trata, portanto, de lutar por uma identidade no sentido de "ser idêntico a", ou seja, "seguir um modelo pré-estabelecido". O pensamento de Foucault e Deleuze opõe-se à idéia de seguir modelos, sejam eles quais forem, o que termina conduzindo a uma dolorosa liberdade: a liberdade de um contínuo criar, de responsabilizar-se por si mesmo, fazendo de si uma obra de arte singular e única. Um total contraponto à idéia de seguir um modelo pré-estabelecido que tenha a pretensão de estabelecer uma "identidade". Tal perspectiva é ao mesmo tempo libertária e angustiante.

    É importante salientar que, ainda conforme Areda, se o sexo é definido como uma divisão entre gêneros, todo sexo e toda sexualidade é heterossexual, no sentido de que "hetero" significa "diferente", ou seja, todo relacionamento sexual entabulado com um ser diferente de mim, seja ele um homem ou uma mulher, será hetero, pois o sujeito se faz homem na medida em que faz do outro um... outro. Essa divisão, existente no imaginário masculino, está longe de ser igualitária, ao contrário, é hierarquizada. Através do ato sexual, os sujeitos são inscritos numa hierarquia, territórios são demarcados, corpos e sujeitos são heterossexualizados: eu sou o homem, você é a mulher.

A partir das descrições históricas do pensador Paul Veyne, ao relatar os hábitos sexuais dos antigos gregos, podemos afirmar que até mesmo as ditas relações "homo" da antiguidade estavam longe de serem "relações entre iguais". Elas eram heterossexuais, na medida em que o homem mais velho, o erastes, exercia sobre o efebo impúbere, ou eromenos, um poder, e uma hierarquia era estabelecida. Uma relação "homo", na antiguidade ou na modernidade, num sentido semântico do termo, envolveria dois sujeitos que fossem considerados iguais (sejam eles machos ou fêmeas), sem hierarquias de subjugador e subjugado. Seria isso possível, ou mesmo real, no chamado "mundo gay"? Para responder a esta pergunta, julgamos necessário antes navegar em outros oceanos reflexivos.

   Ao que parece, segundo Areda, o discurso heteronormativo, esta assim chamada "matriz hegemônica de inteligibilidade", tem o poder de penetrar até mesmo o universo gay, atravessando todas as relações e adequando tudo o que encontra a uma lógica hegemônica. A mesma misoginia que cria o discurso homofóbico sobrevive nessa divisão tão solidamente estruturada por discursos culturais dentro dos guetos gays, criando até nos relacionamentos mais íntimos barreiras identitárias poderosíssimas. A intolerância, pretensamente apontada pelos militantes gays no que eles chamam de "totalitarismo heteronormativo", parece ser uma pálida sombra se comparada à intolerância que subjaz nos próprios guetos homossexuais sob os mais diversos aspectos que serão expostos ao longo deste artigo: o ódio aos travestis, o desprezo aos sexualmente passivos, o horror aos afeminados, como se "ser gay" significasse necessariamente seguir um modelo identitário pré-formado: ser homossexual é possível, contanto que o sujeito siga a cartilha. E a cartilha dita que todos sejam másculos e se comportem bem. Não se trata, obviamente, de uma cartilha escrita, mas fica patente no discurso presente tanto entre heterossexuais quanto homossexuais, em que se vaticina que "ser gay é possível, contanto que o cara seja macho e se dê ao respeito".
Vale a pena questionar: existe, de fato, um exemplo de tolerância? Houve tal exemplo em algum momento da história humana que poderia ser seguido como um modelo? E o que Foucault, Deleuze e Veyne pensam a respeito de seguir modelos históricos passados, conforme propõem alguns militantes?

   É assaz comum, no que concerne aos argumentos de alguns militantes gays acerca da homossexualidade, referir-se - ingenuamente - à antiga Grécia como um exemplo espetacular de civilização tolerante para com a prática homoerótica, considerando a civilização judaico-cristã como atrasada em relação à realidade homossexual. A partir desta comparação histórica, evoca-se a idéia de um relativismo moral e questionam-se as bases do preconceito moderno. Todavia, muitos militantes parecem ignorar que, no que tange à antiga Grécia, temos interdições tão claras quanto as interdições atuais, muito embora sejam interdições diferentes. Conforme discorre Foucault ao longo da sua obra, não é interessante tomarmos outra época como um modelo, pois não há um valor exemplar em um período que não seja o nosso próprio. Deleuze valida esta afirmação, ao sustentar em sua obra Conversações que Foucault detestava retornos: falamos do que vivemos. A história não diz o que somos, não estabelece a nossa identidade, diz apenas aquilo que estamos em vias de diferir. Paul Veyne emite um pensamento similar em O Último Foucault e sua Moral, ao dizer que o que se opõe ao tempo, assim como à eternidade, é a nossa atualidade.

      Fazer uma "arqueologia gay", portanto, não é necessariamente voltar- se para o passado. Deleuze aponta em Conversações para uma arqueologia do presente, em que tomamos as coisas para extrair delas as suas visibilidades. Não se trata, em absoluto, de procurar um modelo dito ideal que sirva como norma moral para os gays, mas - retomando Nietzsche - descobrir como a operação artística da vontade de potência permite a invenção de novas possibilidades de vida: um "ser gay" que se constrói, se inventa, um "ser" enquanto verbo atuante em nosso tempo, jamais como substantivo-modelo de uma época passada.

     Para Foucault, Deleuze e Veyne, não se trata de seguir um modelo, mas de criar um modo de vida gay que admita a pluralidade.

Fonte: http://filosofiacienciaevida.uol.com.br/ESFI/Edicoes/22/artigo87205-1.asp

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Lacan e Descartes

Jacques Lacan, em Os quatros conceitos fundamentais da psicanálise, afirma: “O encaminhamento de Freud é cartesiano – no sentido de que parte do fundamento do sujeito da certeza”. A partir desta afirmação, irei refletir sobre estes dois pensadores, Lacan e Descartes, esboçando semelhanças e diferenças entre eles.Lacan, partindo da análise de um sonho, introduzido por Freud em A Interpretação dos Sonhos, capítulo VII, e da análise de Hamlet, do seu fantasma, o fantasma do pai ideal, demonstra como Freud parte da certeza, tendo a dúvida como apoio de sua certeza.O sonho é o seguinte (narração de Freud): “Após algumas horas de sono, o pai teve um sonho de que seu filho estava de pé ao lado de seu leito, que o apanhou pelo braço e lhe sussurrou em tom de censura: “Pai, não vê que estou queimando?“ Este pai ficara de vigília ao lado do filho enfermo durante dias e noites, sendo que após a sua morte foi repousar no quarto contíguo, estando o filho acompanhado por um velho, que rezava, e o seu corpo cercado por velas altas. Ao acordar percebeu um clarão no quarto ao lado, sendo que o vigia havia  dormido, e o seu filho estava com um dos braços queimado. Este sonho que pode ser considerado de fácil compreensão, também contém a realização de um desejo. Qual? Primeiro, o sonho tornou o filho vivo, depois percebemos como Lacan diz, que tanto este sonho como o dilema de Hamlet referem-se ao “peso dos pecados do pai”, “... a herança do pai é aquilo que nos designa Kierkegaard, é seu pecado”.Freud, afirma que “... aquilo de que nos lembramos de um sonho e sobre o que exercitamos a nossa arte interpretativa já foi mutilado pela infidelidade de nossa memória, que parece muito especialmente incapaz de reter um sonho e bem pode ter perdido exatamente as partes mais importantes de seu conteúdo...quando procuramos voltar a atenção para um de nossos sonhos, descobrimo–nos lamentando o fato de que, embora tenhamos sonhado muito mais, não podemos recordar nada, a não ser um fragmento isolado, que ele próprio, é relembrado com uma incerteza peculiar” (itálico meu).Como Lacan afirma, “... é preciso superar o que conota tudo que seja do conteúdo do inconsciente...o que...macula, põe nódoas no texto de qualquer comunicação de sonho – Não estou certo, tenho dúvidas”.  E, como Freud acentua: “A dúvida sobre se um sonho ou alguns de seus pormenores foram corretamente relatados é mais uma vez um derivativo da censura onírica, da resistência à penetração dos pensamentos oníricos na consciência”. Freud abre uma nota de rodapé para o “mecanismo de dúvida“ no caso Dora, a dúvida na histeria. Prossegue: “Essa resistência não foi exaurida nem mesmo pelos deslocamentos e substituições que ocasionou; ela persiste sob a forma de dúvida presa ao material que foi permitido passar... E, por isso que ao analisar um sonho, insisto em que toda a escala de estimativas de certeza seja abandonada e que a mais débil possibilidade de que algo desta ou daquela sorte possa ter ocorrido no sonho seja tratada como uma certeza completa”.René Descartes, em 1619, após um dia de intensa atividade intelectual, sonha três sonhos sucessivos que interpreta ”...como símbolos da iluminação que recebera e, ao mesmo tempo, como indicação da missão a que deveria consagrar a vida. Essa missão era a de unificar todos os conhecimentos humanos a partir de bases seguras, construindo um edifício plenamente iluminado pela verdade, por isso mesmo, todo feito de certezas racionais”. Grande parte da obra de Descartes é consagrada a ciência, sendo que a partir desses sonhos de novembro de 1619, procura unificar o vasto campo dos conhecimentos, tendo que antes teria que preparar o terreno “... de modo a que nele não medrasse qualquer dúvida. Só então a árvore da sabedoria poderia expandir-se com pleno viço da certeza”. Procura o desafio da dúvida, buscando combatê-la a qualquer preço. Duvida metodicamente de tudo. Amplia a dúvida ao máximo, tornando-a hiperbólica: “passa a duvidar até mesmo das idéias claras e distintas, que o espírito espontaneamente admite como evidentes. ”Lança a hipótese do malin génie, como se a realidade fosse regida por um gênio maligno, que provocaria erros ao homem quando ele pensa que está acertando. Levanta a questão da objetividade dos conhecimentos científicos. Mas à medida que a dúvida prossegue, a cada caminhada, das idéias obscuras de impressões sensíveis às idéias claras universais, chega-se a uma certeza, “se duvido penso”. EmMeditações, Descartes cita Arquimedes: “Arquimedes,  a fim de tirar o globo terrestre de seu lugar e transportá-lo para outro, não pedia nada mais que não fosse um ponto fixo e certo. Portanto, terei o direito de alimentar grandes esperanças, se for bastante feliz para encontrar apenas uma coisa que seja segura e incontestável”. Continua: “Presumo, então, que todas as coisas que vejo são falsas... Então, o que poderá ser considerado verdadeiro? A proposição “eu sou, eu existo”. Prosseguindo: “Mas o que sou eu, agora que presumo que existe alguém que é espantosamente poderoso e, se me atrevo a dizê-lo malicioso e ardiloso, que emprega todas as suas forças e todo o seu empenho em enganar-me? Entre os atributos da alma, alcança o pensar e verifica que “...o pensamento é um atributo que me pertence; somente ele não pode ser separado de mim. Eu sou, eu existo: isto é certo...eu sou alguma coisa verdadeira e verdadeiramente existente, mas que coisa?... uma coisa que pensa”. Questiona o que é uma coisa que pensa: “é uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente”. Se da máxima incerteza surge uma primeira certeza, “penso”, esta é ainda uma certeza a respeito de própria subjetividade. Nada fica garantido em relação a uma realidade exterior ao pensamento. Surge o Cogito: “Penso, logo existo (Cogito ergo sum)”. A existência do eu depende do pensamento.  O Cogito traz a certeza da existência do eu enquanto ser pensante.Na Terceira Meditação, Descartes reflete sobre Deus. Baseando-se no princípio de causalidade, prova a existência de Deus: “... só existindo realmente Deus (causa) pode-se explicar a existência de um ser finito e imperfeito – o eu pensante- porém dotado da idéia de infinito e de perfeição (efeito). Essa idéia estaria na mente do homem como “a marca do artista impressa em sua obra“. “Pelo nome de Deus entendo uma substância infinita, eterna, imutável, independente, onisciente, onipotente e pela qual eu próprio e todas as coisas que são (se é verdade que há coisas que existem) foram criados e produzidos”. Assim, conclui: “... a certeza e verdade de toda ciência dependem apenas do conhecimento do verdadeiro Deus: de maneira que, antes que eu O conhecesse, não podia saber perfeitamente nenhuma outra coisa. E, agora que O conheço tenho o meio de adquirir uma ciência perfeita...” (Quinta Meditação). Logo, Deus se torna garantia de qualquer subsistência, e fundamento absoluto da objetividade. Assim o meditador passa do conhecimento subjetivo isolado de sua própria existência ao conhecimento do mundo externo, sendo Deus garantia da verdade. Já que o intelecto é criação divina, e Deus é um ser perfeito, logo não pode ser instrumento incerto para discernir a verdade. Em si o intelecto não é perfeito, ignora muitas coisas, mas estas deficiências são meras ausências, sendo que os seus poderes positivos (limitados) são confiáveis, pois têm origem em Deus: “...do simples fato de que Deus não é embusteiro e que, por conseguinte, não permitiu que pudesse haver alguma falsidade nas minhas opiniões, que não me tivesse dado também alguma faculdade capaz de corrigi-la, penso poder concluir com segurança que possuo os meios de conhecê-las com certeza... não resta dúvida de que tudo que a natureza me ensina contém alguma verdade. Porque, por natureza considerada em geral, não entendo agora outra coisa a não ser o próprio Deus, ou a ordem e disposição que Deus estabeleceu nas coisas criadas. E, por minha natureza em particular, não entendo outra coisa senão o encadeamento ou o conjunto de todas as coisas que Deus deu”  (Sexta Meditação).Lacan demonstra a analogia de Descartes e Freud, dizendo que Freud, partindo dos seus sonhos, duvida, pois acredita que por trás do conteúdo manifesto do sonho um “pensamento está lá, pensamento que é inconsciente, o que quer dizer que se revela como ausente”. E, Lacan prossegue: ”é a este lugar que ele chama, uma vez que lida com outros o eu penso  pelo qual vai revelar-se o sujeito. Em suma, Freud está seguro de que esse pensamento está lá, completamente sozinho de todo o seu eu sou, se assim podemos dizer, - a menos que, este é o salto, alguém pense em seu lugar “.É aí que Lacan articula a dessimetria entre Freud e Descartes. Não se funda no encaminhamento inicial da certeza inaugural do sujeito, mas “... nesse campo do inconsciente, o sujeito está em casa”. E, por este progresso freudiano, o mundo é modificado “para nós”. A partir da descoberta do inconsciente podemos falar em pensamento inconsciente, lugar da verdade. Onde Lacan conclui: “Descartes não sabia, a não ser que fosse o sujeito de uma certeza e rejeição de todo saber anterior – mas nós, nós sabemos graças a Deus, que o sujeito do inconsciente se manifesta, que isso pensa antes de entrar na certeza”. O correlativo do sujeito para Lacan não é mais da ordem do Outro enganador (gênio maligno), mas da do outro enganado. Isto se observa na experiência de análise, onde o sujeito teme entrar numa pista falsa. E Freud, na análise dos sonhos, diz que é preciso considerar todo o sonho para alcançar o seu conteúdo latente, lugar do pensamento inconsciente. Segundo Lacan, “a diferença do estatuto que dá ao sujeito a dimensão descoberta pelo inconsciente freudiano se prende ao desejo... Tudo que anima, o de que fala toda enunciação, é desejo”.Assim, tanto Freud como Descartes partem de um método comum para atingir uma certeza. Descartes chega ao Cogito, “penso, logo sou“. Mas, por não conhecer a descoberta freudiana de inconsciente, afirma “... o corpo, por sua própria natureza, sempre divisível e o espírito, totalmente indivisível. Porque, de fato, quando considero meu espírito, ou seja, eu mesmo, na medida em que sou apenas uma coisa que pensa, não posso aí distinguir partes algumas, mas me concebo como uma coisa única e inteira” (Sexta Meditação – itálico meu). Já Freud, que atribui instâncias ao aparelho psíquico, introduz no pensamento o homem dividido.Como Lacan afirma: “Não digo que Freud introduz o sujeito no mundo... pois é Descartes quem o faz. Mas direi que Freud se dirige ao sujeito para lhe dizer o seguinte, que é novo – Aqui, no campo do sonho, estás em casa. Wo es war, soll Ich werden”Lacan contesta a tradução freudiana: ”o eu deve deslocar o isso”, aproximando a fórmula aos pré-socráticos (de difícil interpretação), pois não se trata do eu ( ego) no soll Ich werden, mas do lugar da rede dos significantes, isto é, o sujeito. “Lá onde estava, o Ich - o sujeito deve advir”.Descartes traz a luz, no século XVII, o mundo da subjetividade. A consciência, no sentido cognitivo, pode ser uma invenção cartesiana, tornando possível considerar a sua obra uma filosofia do eu (ego). Freud, ao descobrir o inconsciente, traz a cena o pensamento inconsciente. Lacan se refere a um sujeito, que é efeito do significante, “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”. O inconsciente é a grande descoberta freudiana, que dá o salto para o sujeito do inconsciente.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Descartes: A razão acima de tudo


O rigoroso inverno de 1619 imobilizou o exército de Maximiliano da Baviera. Um percalço militar irrelevante para o desfecho da Guerra dos Trinta Anos, que ensangüentaria a Europa, mas que teve inesperada e decisiva importância para a Filosofia e a ciência moderna. René Descartes, jovem francês de 23 anos engajado nas tropas bávaras, aproveitou o frio para se isolar em um quarto de estalagem nas cercanias de Ulm, na Alemanha, e - como era de seu gosto - passar dias em febril atividade intelectual. Na madrugada gelada de 11 de novembro, as centelhas de seu cérebro explodiram em sonhos agitados - em um deles, o Espírito da Verdade lhe abria os tesouros da Ciência. Na manhã seguinte, superexcitado, Descartes concluiu estar no limiar de uma “ciência admirável".
"Penso, logo existo", sua máxima mais conhecida e que viria a ser a viga de sustentação do racionalismo moderno começou a nascer naquelas horas. Nas imagens dos sonhos, o jovem pretendeu ver símbolos de iluminação e indicadores da missão a que deveria consagrar sua vida: unificar todos os conhecimentos humanos sobre bases racionais. Foi ali, ao pé de uma estufa a carvão, a espada inútil encostada à parede, que Descartes pela primeira vez teve a idéia de aplicar a álgebra à geometria e a Matemática a todas as coisas. Ele desempenhou com tamanha habilidade a tarefa de dar novos alicerces ao edifício do pensamento que passou à História como o "pai da Filosofia moderna", cuja obra é o ponto de partida obrigatório para se entender as origens do modo de pensar que tornaria possíveis as revoluções científicas dos séculos seguintes.
Mas isso não estava nos cálculos do lar de Descartes, uma próspera família burguesa radicada entre Tours e Poitiers, no coração da França, e tradicionalmente dedicada ao comércio e à Medicina. Graças a uma bem azeitada estratégia matrimonial, no final do século XVI os Descartes tinham-se ligado a famílias ricas e notáveis da província - os Sain e os Brochard -, e estavam em franca ascensão social. Como era de se desejar para um gentil-homem daqueles tempos não de todo esquecidos do passado medieval, o avó Pierre combatera nas guerras religiosas; a mãe, Jeanne, era filha do tenente-general de polícia de Poitiers. E Joachin Descartes, o pai, chegou a conselheiro do rei no Parlamento da Bretanha título com o qual é identificado na ata de batismo de René, nascido em La Haye-Touraine, a 31 de março de 1596, terceiro e último filho do casal.
Jeanne Brochard morreu tuberculosa um ano depois e ninguém dava um vintém pela sobrevivência do filho. Ele herdara da mãe os pulmões fracos e uma tosse crônica que jamais o abandonaria. Mas o menino de aparência delicada tinha a mente ágil, e Joachin viu nele seu sucessor nos negócios e no Parlamento. Decidido a preparar René para um futuro brilhante, enviou-o em 1606 para o colégio jesuíta de La Flèche, às margens do rio Loire. Fundada apenas dois anos antes, graças à generosidade do rei Henrique IV, o fundador da dinastia Bourbon, a dos Luíses, a escola já era considerada uma das melhores da Europa. Em 1610, quando o soberano morreu e seu coração foi transladado para a capela de La Flèche, o menino René Descartes, monarquista convicto como seria por toda a vida, assistiu emocionado às solenidades.
Como sua saúde frágil era notória, Descartes recebeu permissão para ficar na cama quanto quisesse - o privilégio era igualmente um prêmio a seu brilhante desempenho escolar. Adulto, Descartes manteria o hábito de trabalhar no leito e cultivaria a mesma solidão dos tempos do La Flèche, a ponto de ter tomado, ainda jovem, a decisão de não casar. Mas teve lá suas aventuras: em 1635 nasceu Francine, sua filha com Helena, uma criada. Tampouco seria o sucessor do pai, missão assumida pelo filho mais velho, Pierre. Mas a herança paterna permitiu-lhe viver igual a outros gentis-homens de seu tempo: de forma modesta, mas sem trabalhar. Havia outras heranças a considerar, contudo. O século XVI virara de ponta-cabeça a vida do homem ocidental. Navegadores e aventureiros rasgavam mares e continentes, descobrindo terras e povos.
A efervescência cultural da Renascença criara uma vaga que não cessava de afogar as velhas certezas da Filosofia e da ciência baseadas sobretudo nos escritos do grego Aristóteles e na autoridade da Bíblia. O prestígio do Estado e da Igreja estavam igualmente corroídos pela dissidência política e pela Reforma protestante. Um novo mundo nascia. Mesmo em retirada, porém, a velhas instituições permaneciam, no início do século XVII, robustas o suficiente para queimar na fogueira um certo número de pensadores atrevidos.
A Europa sabia então possuir músculos capazes de arrasar e pilhar impérios na América e de saquear as costas africanas e asiáticas. Mas chocava-se com a revelação de que outros povos viviam segundo padrões bem diferentes daqueles que pareciam os únicos legítimos. Natural que os ventos fossem de perturbação e descrença. "Só há opiniões neste mundo incerto", concluía, desanimado, o pensador francês Michel de Montaigne (1533-1592), o mais célebre dos céticos.
Quando Descartes vai para a escola, está na ordem do dia a busca de um novo caminho para o conhecimento, uma trilha que escape aos labirintos das discussões estéreis. Em poucas palavras, falta um método para a ciência. Em La Flèche, Descartes ainda não sabe, mas será um dos pensadores responsáveis por uma das duas principais vertentes do pensamento moderno - ao buscar na razão a recuperação da certeza científica, dará origem ao racionalismo; o outro percurso será traçado pelo inglês Francis Bacon (1561-1626), que propõe formular as leis científicas partindo de casos e eventos particulares, raiz do experimentalismo.
La Flèche está, contudo, no contrafluxo da história. A escola, onde o latim é a única língua admitida e Cícero o autor mais lido, é um sólido bastião da herança medieval. Descartes fica profundamente decepcionado com a repetição incessante de antigas verdades, sem lugar para, a dúvida. Está fascinado, porém, com a Matemática e se espanta que, "sendo seus conhecimentos tão firmes e sólidos, nunca tivesse conduzido a algo mais elevado". Em 1614, vai cursar Direito na Universidade de Poitiers, de onde sairá dois anos depois com um diploma de doutor e a mesma opinião sobre a erudição tradicional. Nela, as teses mais contraditórias são "cultivadas pelos melhores espíritos", escreveria mais tarde.
Nos meses seguintes, Descartes vive entre a Bretanha e Paris, onde perambula pelos salões mundanos e começa a ficar, conhecido nos círculos intelectuais. É então que conhece o padre Mersenne, seu confidente e consultor por toda a vida. Em 1618, querendo continuar os estudos, parece-lhe razoável fazê-lo na academia militar que Maurício de Nassau - o mesmo que governou Pernambuco - criara em Breda, na Holanda. Vestir farda estrangeira não era nada de extraordinário, visto que Holanda e França eram aliadas nas guerras religiosas contra a Espanha. Em Breda, conhece o médico Isaac Beekman, oito anos mais velho, com quem faz as primeiras experiências sobre a refração da luz e estuda a obra científica do italiano Galileu. No ano seguinte, Descartes abandona o exército do protestante Nassau e se alista nas tropas que o católico Maximiliano da Baviera reunia contra o rei da Boêmia.
O jovem oficial vive um período místico e, em Ulm, ingressa na Associação Rosa Cruz, uma sociedade semi-secreta que recomenda a seus membros o exercício gratuito da Medicina. Seus manuscritos dessa época estão perdidos, mas os títulos dão idéia do que lhe ia pela mente: Parnassas (a região das musas), Olympica (relativo aos deuses). O rigoroso inverno de 1619 em Ulm, em que a tempestade cerebral definiria seu destino, foi recordado por Descartes como uma temporada de solidão e fértil experiência intelectual: “Não encontrando nenhuma conversação que me divertisse e não tendo, além disso, por felicidade, preocupações ou paixões que me perturbassem, ficava todo o dia fechado sozinho num cômodo aquecido por uma estufa, onde dispunha de todo o tempo para me entreter com meus pensamentos.
Descartes estava convencido de que daria uma contribuição decisiva à ciência do conhecimento - na verdade, ele era extremamente vaidoso e se considerava um gênio. "Verdadeira generosidade, que faz que um homem se estime no mais alto ponto em que se pode legitimamente estimar" escreve a Mersenne, relatando suas ambições pessoais. Em 1619, dá início às viagens que se prolongariam por uma década. Entre 1623 e 1625, tendo abandonado a vida militar, vive na Itália, onde faz peregrinação ao santuário de Nossa Senhora de Loreto. Católico fervoroso, Descartes pagava uma promessa. Entre 1626 e 1628, fixa residência em Paris, onde se ocupa de Matemática e dióptrica, o ramo da Física que estuda a refração da luz. Só não abandonou a Filosofia porque o cardeal Pedra de Berulle o animou a servir à causa da religião contra os libertinos. Depois de Henrique IV, subiu ao trono francês seu filho, Luís XIII (de 1610 a 1643). Mas quem de fato governava era o cardeal Richelieu.
Durante dezoito anos, a partir de 1624, Richelieu administrou uma espécie de política desenvolvimentista à moda do século XVII, fomentando o comércio e a indústria. Os engenhos mecânicos proliferavam e estava na ordem do dia ser cientista. Nas ruas de Paris, é possível que Descartes tenha cruzado com Isaac de Portau, Henry d’Aramitz ou mesmo Armand de Sillégue d’Athos, os espadachins famosos da Guarda do Rei que inspiraram os três mosqueteiros de Alexandre Dumas. Ao contrário daqueles contemporâneos sempre às voltas com duelos, porém, Descartes foi um guerreiro relutante - por exemplo, mais um observador do que um combatente na Guerra dos Trinta Anos.
Em 1628, Descartes decide mudar-se para a Holanda, uma terra de tolerância religiosa e, por isso mesmo, de efervescência intelectual, onde viverá quase todo o resto de sua vida. Nessa época, ele era já autor de um certo número de textos sobre Matemática, Física e Filosofia, mas ainda não entregara a obra capaz de revelar a “ciência admirável” que, presunçoso, prometera publicamente. Em 1633, está pronto, enfim, o Tratado do mundo, contendo uma explicação ordenada de todos os fenômenos naturais, da formação dos planetas e da gravidade. até chegar ao homem e ao corpo humano. Mas, justamente nesse ano, Galileu foi condenado pela Inquisição por dizer que a Terra se move ao redor do Sol. Precavido, Descartes engaveta seu livro e resolve dali por diante ser discreto e evitar qualquer confronto com a religião.
"Ando tão assustado", escreveu a Mersenne em 22 de julho de 1633, que estou quase resolvido a queimar todos os meus papéis ou, pelo menos, não deixá-los a ninguém. Confesso que, se isso (o movimento da Terra) é falso, todos os fundamentos de minha filosofia também o são." O Tratado ficou entre os papéis de Descartes e só foi publicado em 1677. Ele não abandonou, porém, a idéia de divulgar suas teses científicas, partindo da Filosofia para criar uma nova Matemática e, sobre ela, edificar uma nova ciência. Assim, em 1637, precede seus três ensaios - Meteoros, Dióptrica e Geometria - de um Discurso do método.
Nessa sua mais famosa obra, expõe por inteiro a metodologia da dúvida, começando por destruir tudo: sua crença na existência do mundo, dos objetos, de seu próprio corpo, de Deus, Tudo pode ser pura ilusão, sonho. Mas resta uma certeza: “ Penso logo existo" (Cogito, ergo sum, em latim). Descartes reconstrói o Universo, demonstra sua própria natureza, reafirma a existência de Deus, das coisas materiais e, por fim, distingue corpo e alma no homem. O mais importante - e que constitui a metodologia básica do cartesianismo - é considerar como verdadeiro somente o que for possível intuir com clareza e evidência.
Descartes estava seguro de ter chegado à mais sólida filosofia jamais pensada. Mas nem por isso ficou livre da polêmica. Para evitar dissabores (não esqueceu Galileu nas mãos do Santo Ofício), costuma submeter seus trabalhos à crítica dos teólogos e os publica, junto com as eventuais objeções. Mas, mesmo na tolerante Holanda, os ministros e acadêmicos se irritam com a repercussão de sua filosofia e vão à luta em defesa de Aristóteles.
A 17 de março de 1642, o Parlamento de Utrecht proíbe que as idéias de Descartes sejam ensinadas na cidade, “ primeiro, porque são novas; depois, porque desviam a juventude da velha e sã filosofia". Com isso, Descartes encheu-se de brios e passa a se defender dos ataques pessoais. Em 1645, a Universidade de Groningen o perdoa, mas a Justiça de Utrecht considera difamatória sua réplica. Dois anos depois, um teólogo da Universidade de Leyden, ainda na Holanda, o acusa de blasfemo, crime punido pela lei. Descartes precisa pedir socorro ao embaixador francês.
Isso não foi suficiente, porém, para melhorar suas relações com a terra natal. Em 1647, em Paris, onde o cardeal Mazarino, sucessor de Richelieu, lhe concede uma pensão, que por sinal jamais será paga, Descartes encontra o jovem Blaise Pascal (1623-l662), a quem sugere experiências sobre o vácuo usando o mercúrio. No ano seguinte, novamente em Paris, encontra a cidade em ebulição política e tomada por barricadas. "O ar de Paris me predispõe a conceber quimeras em lugar de pensamentos filosóficos. Vejo ali tantas pessoas que se enganam em suas opiniões e cálculos que isso me parece uma enfermidade universal", comenta, azedo. Descartes prefere mais que nunca evitar os assuntos polêmicos, ocupando-se sobretudo de questões morais. É o que mostra sua correspondência com a princesa Isabel, filha de Frederico, rei destronado da centro-européia Boêmia, exilado na Holanda.
A última obra do filósofo, As paixões da alma, de 1649, procura entender os sentimentos e tirar conclusões éticas. Nesse ano, ainda que relutante, Descartes aceita um convite para viver na corte sueca. A realeza européia está ávida de brilho intelectual, mas a rainha Cristina, da Suécia, tinha excêntrica noção de como utilizar os serviços do filósofo - ela o chamava para conversar três vezes por semana, às 5 horas da manhã. Visitar o castelo em plena madrugada, no severo inverno nórdico, foi demais para os pulmões delicados de Descartes. A 11 de fevereiro de 1650, ele morreu de tuberculose, em Estocolmo, aos 54 anos de idade. O corpo foi enviado para ser enterrado na terra natal. Mas a cabeça só voltou à França em 1809 - em macabra homenagem à sua inteligência, os suecos conservaram seu crânio por mais de um século e meio.

Fonte: Revista Super Interessante

terça-feira, 17 de junho de 2014

A psicanálise ensina alguma coisa sobre o amor?


Entrevista com Jacques-Alain Miller, publicada na Psychologies Magazine de outubro 2008 (n° 278).

Psychologies: A psicanálise ensina alguma coisa sobre o amor?
Jacques-Alain Miller: Muito, pois é uma experiência cuja fonte é o amor. Trata-se desse amor automático, e freqüentemente inconsciente, que o analisando dirige ao analista e que se chama transferência. É um amor fictício, mas é do mesmo estofo que o amor verdadeiro. Ele atualiza sua mecânica: o amor se dirige àquele que a senhora pensa que conhece sua verdade verdadeira. Porém, o amor permite imaginar que essa verdade será amável, agradável, enquanto ela é, de fato, difícil de suportar.

Psychologies: Então, o que é amar verdadeiramente?
Jacques-Alain Miller: Amar verdadeiramente alguém é acreditar que, ao amá-lo, se alcançará a uma verdade sobre si. Ama-se aquele ou aquela que conserva a resposta, ou uma resposta, à nossa questão “Quem sou eu?”.

Psychologies: Por que alguns sabem amar e outros não?
Jacques-Alain Miller: Alguns sabem provocar o amor no outro, os serial lovers – se posso dizer – homens e mulheres. Eles sabem quais botões apertar para se fazer amar. Porém, não necessariamente amam, mais brincam de gato e rato com suas presas. Para amar, é necessário confessar sua falta e reconhecer que se tem necessidade do outro, que ele lhe falta. Os que crêem ser completos sozinhos, ou querem ser, não sabem amar. E, às vezes, o constatam dolorosamente. Manipulam, mexem os pauzinhos, mas do amor não conhecem nem o risco, nem as delícias.


Psychologies: “Ser completo sozinho”: só um homem pode acreditar nisso…
Jacques-Alain Miller: Acertou! “Amar, dizia Lacan, é dar o que não se tem”. O que quer dizer: amar é reconhecer sua falta e doá-la ao outro, colocá-la no outro. Não é dar o que se possui, os bens, os presentes: é dar algo que não se possui, que vai além de si mesmo. Para isso, é preciso se assegurar de sua falta, de sua “castração”, como dizia Freud. E isso é essencialmente feminino. Só se ama verdadeiramente a partir de uma posição feminina. Amar feminiza. É por isso que o amor é sempre um pouco cômico em um homem. Porém, se ele se deixa intimidar pelo ridículo, é que, na realidade, não está seguro de sua virilidade.


Psychologies: Amar seria mais difícil para os homens?
Jacques-Alain Miller: Ah, sim! Mesmo um homem enamorado tem retornos de orgulho, assaltos de agressividade contra o objeto de seu amor, porque esse amor o coloca na posição de incompletude, de dependência. É por isso que pode desejar as mulheres que não ama, a fim de reencontrar a posição viril que coloca em suspensão quando ama. Esse princípio Freud denominou a “degradação da vida amorosa” no homem: a cisão do amor e do desejo sexual.


Psychologies: E nas mulheres?
Jacques-Alain Miller: É menos habitual. No caso mais freqüente há desdobramento do parceiro masculino. De um lado, está o amante que as faz gozar e que elas desejam, porém, há também o homem do amor, feminizado, funcionalmente castrado. Entretanto, não é a anatomia que comanda: existem as mulheres que adotam uma posição masculina. E cada vez mais. Um homem para o amor, em casa; e homens para o gozo, encontrados na Internet, na rua, no trem…


Psychologies: Por que “cada vez mais”?
Jacques-Alain Miller: Os estereótipos socioculturais da feminilidade e da virilidade estão em plena mutação. Os homens são convidados a acolher suas emoções, a amar, a se feminizar; as mulheres, elas, conhecem ao contrário um certo “empuxo-ao-homem”: em nome da igualdade jurídica são conduzidas a repetir “eu também”. Ao mesmo tempo, os homossexuais reivindicam os direitos e os símbolos dos héteros, como casamento e filiação. Donde uma grande instabilidade dos papéis, uma fluidez generalizada do teatro do amor, que contrasta com a fixidez de antigamente. O amor se torna “líquido”, constata o sociólogo Zygmunt Bauman. Cada um é levado a inventar seu próprio “estilo de vida” e a assumir seu modo de gozar e de amar. Os cenários tradicionais caem em lento desuso. A pressão social para neles se conformar não desapareceu, mas está em baixa.
  


Psychologies: “O amor é sempre recíproco”, dizia Lacan. Isso ainda é verdade no contexto atual? O que significa?
Jacques-Alain Miller: Repete-se esta frase sem compreendê-la ou compreendendo-a mal. Ela não quer dizer que é suficiente amar alguém para que ele vos ame. Isso seria absurdo. Quer dizer: “Se eu te amo é que tu és amável. Sou eu que amo, mas tu, tu também estás envolvido, porque há em ti alguma coisa que me faz te amar. É recíproco porque existe um vai-e-vem: o amor que tenho por ti é efeito do retorno da causa do amor que tu és para mim. Portanto, tu não estás aí à toa. Meu amor por ti não é só assunto meu, mas teu também. Meu amor diz alguma coisa de ti que talvez tu mesmo não conheças”. Isso não assegura, de forma alguma, que ao amor de um responderá o amor do outro: isso, quando isso se produz, é sempre da ordem do milagre, não é calculável por antecipação.


Psychologies: Não se encontra seu ‘cada um’, sua ‘cada uma’ por acaso. Por que ele? Por que ela?
Jacques-Alain Miller: Existe o que Freud chamou de Liebesbedingung, a condição do amor, a causa do desejo. É um traço particular – ou um conjunto de traços – que tem para cada um função determinante na escolha amorosa. Isto escapa totalmente às neurociências, porque é próprio de cada um, tem a ver com sua história singular e íntima. Traços às vezes ínfimos estão em jogo. Freud, por exemplo, assinalou como causa do desejo em um de seus pacientes um brilho de luz no nariz de uma mulher!


Psychologies: É difícil acreditar em um amor fundado nesses elementos sem valor, nessas baboseiras!
Jacques-Alain Miller: A realidade do inconsciente ultrapassa a ficção. A senhora não tem idéia de tudo o que está fundado, na vida humana, e especialmente no amor, em bagatelas, em cabeças de alfinete, os “divinos detalhes”. É verdade que, sobretudo no macho, se encontram tais causas do desejo, que são como fetiches cuja presença é indispensável para desencadear o processo amoroso. As particularidades miúdas, que relembram o pai, a mãe, o irmão, a irmã, tal personagem da infância, também têm seu papel na escolha amorosa das mulheres. Porém, a forma feminina do amor é, de preferência, mais erotômana que fetichista : elas querem ser amadas, e o interesse, o amor que alguém lhes manifesta, ou que elas supõem no outro, é sempre uma condição sine qua non para desencadear seu amor, ou, pelo menos, seu consentimento. O fenômeno é a base da corte masculina.


Psychologies: O senhor atribui algum papel às fantasias?
Jacques-Alain Miller: Nas mulheres, quer sejam conscientes ou inconscientes, são mais determinantes para a posição de gozo do que para a escolha amorosa. E é o inverso para os homens. Por exemplo, acontece de uma mulher só conseguir obter o gozo – o orgasmo, digamos – com a condição de se imaginar, durante o próprio ato, sendo batida, violada, ou de ser uma outra mulher, ou ainda de estar ausente, em outro lugar.


Psychologies: E a fantasia masculina?
Jacques-Alain Miller: Está bem evidente no amor à primeira vista. O exemplo clássico, comentado por Lacan, é, no romance de Goethe, a súbita paixão do jovem Werther por Charlotte, no momento em que a vê pela primeira vez, alimentando ao numeroso grupo de crianças que a rodeiam. Há aqui a qualidade maternal da mulher que desencadeia o amor. Outro exemplo, retirado de minha prática, é este: um patrão qüinquagenário recebe candidatas a um posto de secretária. Uma jovem mulher de 20 anos se apresenta; ele lhe declara de imediato seu fogo. Pergunta-se o que o tomou, entra em análise. Lá, descobre o desencadeante: ele havia nela reencontrado os traços que evocavam o que ele próprio era quando tinha 20 anos, quando se apresentou ao seu primeiro emprego. Ele estava, de alguma forma, caído de amores por ele mesmo. Reencontra-se nesses dois exemplos, as duas vertentes distinguidas por Freud: ama-se ou a pessoa que protege, aqui a mãe, ou a uma imagem narcísica de si mesmo.


Psychologies: Tem-se a impressão de que somos marionetes!
Jacques-Alain Miller: Não, entre tal homem e tal mulher, nada está escrito por antecipação, não há bússola, nem proporção pré-estabelecida. Seu encontro não é programado como o do espermatozóide e do óvulo; nada a ver também com os genes. Os homens e as mulheres falam, vivem num mundo de discurso, e isso é determinante. As modalidades do amor são ultra-sensíveis à cultura ambiente. Cada civilização se distingue pela maneira como estrutura a relação entre os sexos. Ora, acontece que no Ocidente, em nossas sociedades ao mesmo tempo liberais, mercadológicas e jurídicas, o “múltiplo” está passando a destronar o “um”. O modelo ideal do “grande amor de toda a vida” cede, pouco a pouco, terreno para o speed dating, o speed loving e toda floração de cenários amorosos alternativos, sucessivos, inclusive simultâneos.

Psychologies: E o amor no tempo, em sua duração? Na eternidade?
Jacques-Alain Miller: Dizia Balzac: “Toda paixão que não se acredita eterna é repugnante”. Entretanto, pode o laço se manter por toda a vida no registro da paixão? Quanto mais um homem se consagra a uma só mulher, mais ela tende a ter para ele uma significação maternal: quanto mais sublime e intocada, mais amada. São os homossexuais casados que melhor desenvolvem esse culto à mulher: Aragão canta seu amor por Elsa; assim que ela morre, bom dia rapazes! E quando uma mulher se agarra a um só homem, ela o castra. Portanto, o caminho é estreito. O melhor caminho do amor conjugal é a amizade, dizia, de fato, Aristóteles.

Psychologies: O problema é que os homens dizem não compreender o que querem as mulheres; e as mulheres, o que os homens esperam delas…
Jacques-Alain Miller: Sim. O que faz objeção à solução aristotélica é que o diálogo de um sexo ao outro é impossível, suspirava Lacan. Os amantes estão, de fato, condenados a aprender indefinidamente a língua do outro, tateando, buscando as chaves, sempre revogáveis. O amor é um labirinto de mal entendidos onde a saída não existe.

Entrevista realizada por Hanna Waar

Tradução de Maria do Carmo Dias Batista

sexta-feira, 13 de junho de 2014

A V Semana de Filosofia da Faculdade Católica de Uberlândia  que tem como tema "Ética e Cidadania", foi aberta com a palestra do professor Humberto Aparecido Guido/UFU. As apresentações de trabalhos serão feitas na parte da manhã dessa quinta e sexta-feira. A semana se encerrará, nessa sexta-feira as 19hs no auditório da faculdade, com a palestra do professor Ibraim Vitor de Oliveira/PUC Minas, com o tema: Ética e filosofia contemporânea.



segunda-feira, 9 de junho de 2014

Valesca Popozuda: Grande Pensadora Contemporânea

Pesquisando vários sites de conteúdo de filosofia, achei no youtube uma vídeo aula do blog: http://www.filosofiahoje.com/ que fala sobre a polêmica envolvendo a Valesca Popozuda como pensadora.
Vale a pena conferir as aulas desse canal, que oferece aulas com conteúdos clássicos de filosofia como também, aulas com temas atuais.