quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Lacan e Descartes

Jacques Lacan, em Os quatros conceitos fundamentais da psicanálise, afirma: “O encaminhamento de Freud é cartesiano – no sentido de que parte do fundamento do sujeito da certeza”. A partir desta afirmação, irei refletir sobre estes dois pensadores, Lacan e Descartes, esboçando semelhanças e diferenças entre eles.Lacan, partindo da análise de um sonho, introduzido por Freud em A Interpretação dos Sonhos, capítulo VII, e da análise de Hamlet, do seu fantasma, o fantasma do pai ideal, demonstra como Freud parte da certeza, tendo a dúvida como apoio de sua certeza.O sonho é o seguinte (narração de Freud): “Após algumas horas de sono, o pai teve um sonho de que seu filho estava de pé ao lado de seu leito, que o apanhou pelo braço e lhe sussurrou em tom de censura: “Pai, não vê que estou queimando?“ Este pai ficara de vigília ao lado do filho enfermo durante dias e noites, sendo que após a sua morte foi repousar no quarto contíguo, estando o filho acompanhado por um velho, que rezava, e o seu corpo cercado por velas altas. Ao acordar percebeu um clarão no quarto ao lado, sendo que o vigia havia  dormido, e o seu filho estava com um dos braços queimado. Este sonho que pode ser considerado de fácil compreensão, também contém a realização de um desejo. Qual? Primeiro, o sonho tornou o filho vivo, depois percebemos como Lacan diz, que tanto este sonho como o dilema de Hamlet referem-se ao “peso dos pecados do pai”, “... a herança do pai é aquilo que nos designa Kierkegaard, é seu pecado”.Freud, afirma que “... aquilo de que nos lembramos de um sonho e sobre o que exercitamos a nossa arte interpretativa já foi mutilado pela infidelidade de nossa memória, que parece muito especialmente incapaz de reter um sonho e bem pode ter perdido exatamente as partes mais importantes de seu conteúdo...quando procuramos voltar a atenção para um de nossos sonhos, descobrimo–nos lamentando o fato de que, embora tenhamos sonhado muito mais, não podemos recordar nada, a não ser um fragmento isolado, que ele próprio, é relembrado com uma incerteza peculiar” (itálico meu).Como Lacan afirma, “... é preciso superar o que conota tudo que seja do conteúdo do inconsciente...o que...macula, põe nódoas no texto de qualquer comunicação de sonho – Não estou certo, tenho dúvidas”.  E, como Freud acentua: “A dúvida sobre se um sonho ou alguns de seus pormenores foram corretamente relatados é mais uma vez um derivativo da censura onírica, da resistência à penetração dos pensamentos oníricos na consciência”. Freud abre uma nota de rodapé para o “mecanismo de dúvida“ no caso Dora, a dúvida na histeria. Prossegue: “Essa resistência não foi exaurida nem mesmo pelos deslocamentos e substituições que ocasionou; ela persiste sob a forma de dúvida presa ao material que foi permitido passar... E, por isso que ao analisar um sonho, insisto em que toda a escala de estimativas de certeza seja abandonada e que a mais débil possibilidade de que algo desta ou daquela sorte possa ter ocorrido no sonho seja tratada como uma certeza completa”.René Descartes, em 1619, após um dia de intensa atividade intelectual, sonha três sonhos sucessivos que interpreta ”...como símbolos da iluminação que recebera e, ao mesmo tempo, como indicação da missão a que deveria consagrar a vida. Essa missão era a de unificar todos os conhecimentos humanos a partir de bases seguras, construindo um edifício plenamente iluminado pela verdade, por isso mesmo, todo feito de certezas racionais”. Grande parte da obra de Descartes é consagrada a ciência, sendo que a partir desses sonhos de novembro de 1619, procura unificar o vasto campo dos conhecimentos, tendo que antes teria que preparar o terreno “... de modo a que nele não medrasse qualquer dúvida. Só então a árvore da sabedoria poderia expandir-se com pleno viço da certeza”. Procura o desafio da dúvida, buscando combatê-la a qualquer preço. Duvida metodicamente de tudo. Amplia a dúvida ao máximo, tornando-a hiperbólica: “passa a duvidar até mesmo das idéias claras e distintas, que o espírito espontaneamente admite como evidentes. ”Lança a hipótese do malin génie, como se a realidade fosse regida por um gênio maligno, que provocaria erros ao homem quando ele pensa que está acertando. Levanta a questão da objetividade dos conhecimentos científicos. Mas à medida que a dúvida prossegue, a cada caminhada, das idéias obscuras de impressões sensíveis às idéias claras universais, chega-se a uma certeza, “se duvido penso”. EmMeditações, Descartes cita Arquimedes: “Arquimedes,  a fim de tirar o globo terrestre de seu lugar e transportá-lo para outro, não pedia nada mais que não fosse um ponto fixo e certo. Portanto, terei o direito de alimentar grandes esperanças, se for bastante feliz para encontrar apenas uma coisa que seja segura e incontestável”. Continua: “Presumo, então, que todas as coisas que vejo são falsas... Então, o que poderá ser considerado verdadeiro? A proposição “eu sou, eu existo”. Prosseguindo: “Mas o que sou eu, agora que presumo que existe alguém que é espantosamente poderoso e, se me atrevo a dizê-lo malicioso e ardiloso, que emprega todas as suas forças e todo o seu empenho em enganar-me? Entre os atributos da alma, alcança o pensar e verifica que “...o pensamento é um atributo que me pertence; somente ele não pode ser separado de mim. Eu sou, eu existo: isto é certo...eu sou alguma coisa verdadeira e verdadeiramente existente, mas que coisa?... uma coisa que pensa”. Questiona o que é uma coisa que pensa: “é uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente”. Se da máxima incerteza surge uma primeira certeza, “penso”, esta é ainda uma certeza a respeito de própria subjetividade. Nada fica garantido em relação a uma realidade exterior ao pensamento. Surge o Cogito: “Penso, logo existo (Cogito ergo sum)”. A existência do eu depende do pensamento.  O Cogito traz a certeza da existência do eu enquanto ser pensante.Na Terceira Meditação, Descartes reflete sobre Deus. Baseando-se no princípio de causalidade, prova a existência de Deus: “... só existindo realmente Deus (causa) pode-se explicar a existência de um ser finito e imperfeito – o eu pensante- porém dotado da idéia de infinito e de perfeição (efeito). Essa idéia estaria na mente do homem como “a marca do artista impressa em sua obra“. “Pelo nome de Deus entendo uma substância infinita, eterna, imutável, independente, onisciente, onipotente e pela qual eu próprio e todas as coisas que são (se é verdade que há coisas que existem) foram criados e produzidos”. Assim, conclui: “... a certeza e verdade de toda ciência dependem apenas do conhecimento do verdadeiro Deus: de maneira que, antes que eu O conhecesse, não podia saber perfeitamente nenhuma outra coisa. E, agora que O conheço tenho o meio de adquirir uma ciência perfeita...” (Quinta Meditação). Logo, Deus se torna garantia de qualquer subsistência, e fundamento absoluto da objetividade. Assim o meditador passa do conhecimento subjetivo isolado de sua própria existência ao conhecimento do mundo externo, sendo Deus garantia da verdade. Já que o intelecto é criação divina, e Deus é um ser perfeito, logo não pode ser instrumento incerto para discernir a verdade. Em si o intelecto não é perfeito, ignora muitas coisas, mas estas deficiências são meras ausências, sendo que os seus poderes positivos (limitados) são confiáveis, pois têm origem em Deus: “...do simples fato de que Deus não é embusteiro e que, por conseguinte, não permitiu que pudesse haver alguma falsidade nas minhas opiniões, que não me tivesse dado também alguma faculdade capaz de corrigi-la, penso poder concluir com segurança que possuo os meios de conhecê-las com certeza... não resta dúvida de que tudo que a natureza me ensina contém alguma verdade. Porque, por natureza considerada em geral, não entendo agora outra coisa a não ser o próprio Deus, ou a ordem e disposição que Deus estabeleceu nas coisas criadas. E, por minha natureza em particular, não entendo outra coisa senão o encadeamento ou o conjunto de todas as coisas que Deus deu”  (Sexta Meditação).Lacan demonstra a analogia de Descartes e Freud, dizendo que Freud, partindo dos seus sonhos, duvida, pois acredita que por trás do conteúdo manifesto do sonho um “pensamento está lá, pensamento que é inconsciente, o que quer dizer que se revela como ausente”. E, Lacan prossegue: ”é a este lugar que ele chama, uma vez que lida com outros o eu penso  pelo qual vai revelar-se o sujeito. Em suma, Freud está seguro de que esse pensamento está lá, completamente sozinho de todo o seu eu sou, se assim podemos dizer, - a menos que, este é o salto, alguém pense em seu lugar “.É aí que Lacan articula a dessimetria entre Freud e Descartes. Não se funda no encaminhamento inicial da certeza inaugural do sujeito, mas “... nesse campo do inconsciente, o sujeito está em casa”. E, por este progresso freudiano, o mundo é modificado “para nós”. A partir da descoberta do inconsciente podemos falar em pensamento inconsciente, lugar da verdade. Onde Lacan conclui: “Descartes não sabia, a não ser que fosse o sujeito de uma certeza e rejeição de todo saber anterior – mas nós, nós sabemos graças a Deus, que o sujeito do inconsciente se manifesta, que isso pensa antes de entrar na certeza”. O correlativo do sujeito para Lacan não é mais da ordem do Outro enganador (gênio maligno), mas da do outro enganado. Isto se observa na experiência de análise, onde o sujeito teme entrar numa pista falsa. E Freud, na análise dos sonhos, diz que é preciso considerar todo o sonho para alcançar o seu conteúdo latente, lugar do pensamento inconsciente. Segundo Lacan, “a diferença do estatuto que dá ao sujeito a dimensão descoberta pelo inconsciente freudiano se prende ao desejo... Tudo que anima, o de que fala toda enunciação, é desejo”.Assim, tanto Freud como Descartes partem de um método comum para atingir uma certeza. Descartes chega ao Cogito, “penso, logo sou“. Mas, por não conhecer a descoberta freudiana de inconsciente, afirma “... o corpo, por sua própria natureza, sempre divisível e o espírito, totalmente indivisível. Porque, de fato, quando considero meu espírito, ou seja, eu mesmo, na medida em que sou apenas uma coisa que pensa, não posso aí distinguir partes algumas, mas me concebo como uma coisa única e inteira” (Sexta Meditação – itálico meu). Já Freud, que atribui instâncias ao aparelho psíquico, introduz no pensamento o homem dividido.Como Lacan afirma: “Não digo que Freud introduz o sujeito no mundo... pois é Descartes quem o faz. Mas direi que Freud se dirige ao sujeito para lhe dizer o seguinte, que é novo – Aqui, no campo do sonho, estás em casa. Wo es war, soll Ich werden”Lacan contesta a tradução freudiana: ”o eu deve deslocar o isso”, aproximando a fórmula aos pré-socráticos (de difícil interpretação), pois não se trata do eu ( ego) no soll Ich werden, mas do lugar da rede dos significantes, isto é, o sujeito. “Lá onde estava, o Ich - o sujeito deve advir”.Descartes traz a luz, no século XVII, o mundo da subjetividade. A consciência, no sentido cognitivo, pode ser uma invenção cartesiana, tornando possível considerar a sua obra uma filosofia do eu (ego). Freud, ao descobrir o inconsciente, traz a cena o pensamento inconsciente. Lacan se refere a um sujeito, que é efeito do significante, “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”. O inconsciente é a grande descoberta freudiana, que dá o salto para o sujeito do inconsciente.