terça-feira, 18 de novembro de 2014

Descartes: A razão acima de tudo


O rigoroso inverno de 1619 imobilizou o exército de Maximiliano da Baviera. Um percalço militar irrelevante para o desfecho da Guerra dos Trinta Anos, que ensangüentaria a Europa, mas que teve inesperada e decisiva importância para a Filosofia e a ciência moderna. René Descartes, jovem francês de 23 anos engajado nas tropas bávaras, aproveitou o frio para se isolar em um quarto de estalagem nas cercanias de Ulm, na Alemanha, e - como era de seu gosto - passar dias em febril atividade intelectual. Na madrugada gelada de 11 de novembro, as centelhas de seu cérebro explodiram em sonhos agitados - em um deles, o Espírito da Verdade lhe abria os tesouros da Ciência. Na manhã seguinte, superexcitado, Descartes concluiu estar no limiar de uma “ciência admirável".
"Penso, logo existo", sua máxima mais conhecida e que viria a ser a viga de sustentação do racionalismo moderno começou a nascer naquelas horas. Nas imagens dos sonhos, o jovem pretendeu ver símbolos de iluminação e indicadores da missão a que deveria consagrar sua vida: unificar todos os conhecimentos humanos sobre bases racionais. Foi ali, ao pé de uma estufa a carvão, a espada inútil encostada à parede, que Descartes pela primeira vez teve a idéia de aplicar a álgebra à geometria e a Matemática a todas as coisas. Ele desempenhou com tamanha habilidade a tarefa de dar novos alicerces ao edifício do pensamento que passou à História como o "pai da Filosofia moderna", cuja obra é o ponto de partida obrigatório para se entender as origens do modo de pensar que tornaria possíveis as revoluções científicas dos séculos seguintes.
Mas isso não estava nos cálculos do lar de Descartes, uma próspera família burguesa radicada entre Tours e Poitiers, no coração da França, e tradicionalmente dedicada ao comércio e à Medicina. Graças a uma bem azeitada estratégia matrimonial, no final do século XVI os Descartes tinham-se ligado a famílias ricas e notáveis da província - os Sain e os Brochard -, e estavam em franca ascensão social. Como era de se desejar para um gentil-homem daqueles tempos não de todo esquecidos do passado medieval, o avó Pierre combatera nas guerras religiosas; a mãe, Jeanne, era filha do tenente-general de polícia de Poitiers. E Joachin Descartes, o pai, chegou a conselheiro do rei no Parlamento da Bretanha título com o qual é identificado na ata de batismo de René, nascido em La Haye-Touraine, a 31 de março de 1596, terceiro e último filho do casal.
Jeanne Brochard morreu tuberculosa um ano depois e ninguém dava um vintém pela sobrevivência do filho. Ele herdara da mãe os pulmões fracos e uma tosse crônica que jamais o abandonaria. Mas o menino de aparência delicada tinha a mente ágil, e Joachin viu nele seu sucessor nos negócios e no Parlamento. Decidido a preparar René para um futuro brilhante, enviou-o em 1606 para o colégio jesuíta de La Flèche, às margens do rio Loire. Fundada apenas dois anos antes, graças à generosidade do rei Henrique IV, o fundador da dinastia Bourbon, a dos Luíses, a escola já era considerada uma das melhores da Europa. Em 1610, quando o soberano morreu e seu coração foi transladado para a capela de La Flèche, o menino René Descartes, monarquista convicto como seria por toda a vida, assistiu emocionado às solenidades.
Como sua saúde frágil era notória, Descartes recebeu permissão para ficar na cama quanto quisesse - o privilégio era igualmente um prêmio a seu brilhante desempenho escolar. Adulto, Descartes manteria o hábito de trabalhar no leito e cultivaria a mesma solidão dos tempos do La Flèche, a ponto de ter tomado, ainda jovem, a decisão de não casar. Mas teve lá suas aventuras: em 1635 nasceu Francine, sua filha com Helena, uma criada. Tampouco seria o sucessor do pai, missão assumida pelo filho mais velho, Pierre. Mas a herança paterna permitiu-lhe viver igual a outros gentis-homens de seu tempo: de forma modesta, mas sem trabalhar. Havia outras heranças a considerar, contudo. O século XVI virara de ponta-cabeça a vida do homem ocidental. Navegadores e aventureiros rasgavam mares e continentes, descobrindo terras e povos.
A efervescência cultural da Renascença criara uma vaga que não cessava de afogar as velhas certezas da Filosofia e da ciência baseadas sobretudo nos escritos do grego Aristóteles e na autoridade da Bíblia. O prestígio do Estado e da Igreja estavam igualmente corroídos pela dissidência política e pela Reforma protestante. Um novo mundo nascia. Mesmo em retirada, porém, a velhas instituições permaneciam, no início do século XVII, robustas o suficiente para queimar na fogueira um certo número de pensadores atrevidos.
A Europa sabia então possuir músculos capazes de arrasar e pilhar impérios na América e de saquear as costas africanas e asiáticas. Mas chocava-se com a revelação de que outros povos viviam segundo padrões bem diferentes daqueles que pareciam os únicos legítimos. Natural que os ventos fossem de perturbação e descrença. "Só há opiniões neste mundo incerto", concluía, desanimado, o pensador francês Michel de Montaigne (1533-1592), o mais célebre dos céticos.
Quando Descartes vai para a escola, está na ordem do dia a busca de um novo caminho para o conhecimento, uma trilha que escape aos labirintos das discussões estéreis. Em poucas palavras, falta um método para a ciência. Em La Flèche, Descartes ainda não sabe, mas será um dos pensadores responsáveis por uma das duas principais vertentes do pensamento moderno - ao buscar na razão a recuperação da certeza científica, dará origem ao racionalismo; o outro percurso será traçado pelo inglês Francis Bacon (1561-1626), que propõe formular as leis científicas partindo de casos e eventos particulares, raiz do experimentalismo.
La Flèche está, contudo, no contrafluxo da história. A escola, onde o latim é a única língua admitida e Cícero o autor mais lido, é um sólido bastião da herança medieval. Descartes fica profundamente decepcionado com a repetição incessante de antigas verdades, sem lugar para, a dúvida. Está fascinado, porém, com a Matemática e se espanta que, "sendo seus conhecimentos tão firmes e sólidos, nunca tivesse conduzido a algo mais elevado". Em 1614, vai cursar Direito na Universidade de Poitiers, de onde sairá dois anos depois com um diploma de doutor e a mesma opinião sobre a erudição tradicional. Nela, as teses mais contraditórias são "cultivadas pelos melhores espíritos", escreveria mais tarde.
Nos meses seguintes, Descartes vive entre a Bretanha e Paris, onde perambula pelos salões mundanos e começa a ficar, conhecido nos círculos intelectuais. É então que conhece o padre Mersenne, seu confidente e consultor por toda a vida. Em 1618, querendo continuar os estudos, parece-lhe razoável fazê-lo na academia militar que Maurício de Nassau - o mesmo que governou Pernambuco - criara em Breda, na Holanda. Vestir farda estrangeira não era nada de extraordinário, visto que Holanda e França eram aliadas nas guerras religiosas contra a Espanha. Em Breda, conhece o médico Isaac Beekman, oito anos mais velho, com quem faz as primeiras experiências sobre a refração da luz e estuda a obra científica do italiano Galileu. No ano seguinte, Descartes abandona o exército do protestante Nassau e se alista nas tropas que o católico Maximiliano da Baviera reunia contra o rei da Boêmia.
O jovem oficial vive um período místico e, em Ulm, ingressa na Associação Rosa Cruz, uma sociedade semi-secreta que recomenda a seus membros o exercício gratuito da Medicina. Seus manuscritos dessa época estão perdidos, mas os títulos dão idéia do que lhe ia pela mente: Parnassas (a região das musas), Olympica (relativo aos deuses). O rigoroso inverno de 1619 em Ulm, em que a tempestade cerebral definiria seu destino, foi recordado por Descartes como uma temporada de solidão e fértil experiência intelectual: “Não encontrando nenhuma conversação que me divertisse e não tendo, além disso, por felicidade, preocupações ou paixões que me perturbassem, ficava todo o dia fechado sozinho num cômodo aquecido por uma estufa, onde dispunha de todo o tempo para me entreter com meus pensamentos.
Descartes estava convencido de que daria uma contribuição decisiva à ciência do conhecimento - na verdade, ele era extremamente vaidoso e se considerava um gênio. "Verdadeira generosidade, que faz que um homem se estime no mais alto ponto em que se pode legitimamente estimar" escreve a Mersenne, relatando suas ambições pessoais. Em 1619, dá início às viagens que se prolongariam por uma década. Entre 1623 e 1625, tendo abandonado a vida militar, vive na Itália, onde faz peregrinação ao santuário de Nossa Senhora de Loreto. Católico fervoroso, Descartes pagava uma promessa. Entre 1626 e 1628, fixa residência em Paris, onde se ocupa de Matemática e dióptrica, o ramo da Física que estuda a refração da luz. Só não abandonou a Filosofia porque o cardeal Pedra de Berulle o animou a servir à causa da religião contra os libertinos. Depois de Henrique IV, subiu ao trono francês seu filho, Luís XIII (de 1610 a 1643). Mas quem de fato governava era o cardeal Richelieu.
Durante dezoito anos, a partir de 1624, Richelieu administrou uma espécie de política desenvolvimentista à moda do século XVII, fomentando o comércio e a indústria. Os engenhos mecânicos proliferavam e estava na ordem do dia ser cientista. Nas ruas de Paris, é possível que Descartes tenha cruzado com Isaac de Portau, Henry d’Aramitz ou mesmo Armand de Sillégue d’Athos, os espadachins famosos da Guarda do Rei que inspiraram os três mosqueteiros de Alexandre Dumas. Ao contrário daqueles contemporâneos sempre às voltas com duelos, porém, Descartes foi um guerreiro relutante - por exemplo, mais um observador do que um combatente na Guerra dos Trinta Anos.
Em 1628, Descartes decide mudar-se para a Holanda, uma terra de tolerância religiosa e, por isso mesmo, de efervescência intelectual, onde viverá quase todo o resto de sua vida. Nessa época, ele era já autor de um certo número de textos sobre Matemática, Física e Filosofia, mas ainda não entregara a obra capaz de revelar a “ciência admirável” que, presunçoso, prometera publicamente. Em 1633, está pronto, enfim, o Tratado do mundo, contendo uma explicação ordenada de todos os fenômenos naturais, da formação dos planetas e da gravidade. até chegar ao homem e ao corpo humano. Mas, justamente nesse ano, Galileu foi condenado pela Inquisição por dizer que a Terra se move ao redor do Sol. Precavido, Descartes engaveta seu livro e resolve dali por diante ser discreto e evitar qualquer confronto com a religião.
"Ando tão assustado", escreveu a Mersenne em 22 de julho de 1633, que estou quase resolvido a queimar todos os meus papéis ou, pelo menos, não deixá-los a ninguém. Confesso que, se isso (o movimento da Terra) é falso, todos os fundamentos de minha filosofia também o são." O Tratado ficou entre os papéis de Descartes e só foi publicado em 1677. Ele não abandonou, porém, a idéia de divulgar suas teses científicas, partindo da Filosofia para criar uma nova Matemática e, sobre ela, edificar uma nova ciência. Assim, em 1637, precede seus três ensaios - Meteoros, Dióptrica e Geometria - de um Discurso do método.
Nessa sua mais famosa obra, expõe por inteiro a metodologia da dúvida, começando por destruir tudo: sua crença na existência do mundo, dos objetos, de seu próprio corpo, de Deus, Tudo pode ser pura ilusão, sonho. Mas resta uma certeza: “ Penso logo existo" (Cogito, ergo sum, em latim). Descartes reconstrói o Universo, demonstra sua própria natureza, reafirma a existência de Deus, das coisas materiais e, por fim, distingue corpo e alma no homem. O mais importante - e que constitui a metodologia básica do cartesianismo - é considerar como verdadeiro somente o que for possível intuir com clareza e evidência.
Descartes estava seguro de ter chegado à mais sólida filosofia jamais pensada. Mas nem por isso ficou livre da polêmica. Para evitar dissabores (não esqueceu Galileu nas mãos do Santo Ofício), costuma submeter seus trabalhos à crítica dos teólogos e os publica, junto com as eventuais objeções. Mas, mesmo na tolerante Holanda, os ministros e acadêmicos se irritam com a repercussão de sua filosofia e vão à luta em defesa de Aristóteles.
A 17 de março de 1642, o Parlamento de Utrecht proíbe que as idéias de Descartes sejam ensinadas na cidade, “ primeiro, porque são novas; depois, porque desviam a juventude da velha e sã filosofia". Com isso, Descartes encheu-se de brios e passa a se defender dos ataques pessoais. Em 1645, a Universidade de Groningen o perdoa, mas a Justiça de Utrecht considera difamatória sua réplica. Dois anos depois, um teólogo da Universidade de Leyden, ainda na Holanda, o acusa de blasfemo, crime punido pela lei. Descartes precisa pedir socorro ao embaixador francês.
Isso não foi suficiente, porém, para melhorar suas relações com a terra natal. Em 1647, em Paris, onde o cardeal Mazarino, sucessor de Richelieu, lhe concede uma pensão, que por sinal jamais será paga, Descartes encontra o jovem Blaise Pascal (1623-l662), a quem sugere experiências sobre o vácuo usando o mercúrio. No ano seguinte, novamente em Paris, encontra a cidade em ebulição política e tomada por barricadas. "O ar de Paris me predispõe a conceber quimeras em lugar de pensamentos filosóficos. Vejo ali tantas pessoas que se enganam em suas opiniões e cálculos que isso me parece uma enfermidade universal", comenta, azedo. Descartes prefere mais que nunca evitar os assuntos polêmicos, ocupando-se sobretudo de questões morais. É o que mostra sua correspondência com a princesa Isabel, filha de Frederico, rei destronado da centro-européia Boêmia, exilado na Holanda.
A última obra do filósofo, As paixões da alma, de 1649, procura entender os sentimentos e tirar conclusões éticas. Nesse ano, ainda que relutante, Descartes aceita um convite para viver na corte sueca. A realeza européia está ávida de brilho intelectual, mas a rainha Cristina, da Suécia, tinha excêntrica noção de como utilizar os serviços do filósofo - ela o chamava para conversar três vezes por semana, às 5 horas da manhã. Visitar o castelo em plena madrugada, no severo inverno nórdico, foi demais para os pulmões delicados de Descartes. A 11 de fevereiro de 1650, ele morreu de tuberculose, em Estocolmo, aos 54 anos de idade. O corpo foi enviado para ser enterrado na terra natal. Mas a cabeça só voltou à França em 1809 - em macabra homenagem à sua inteligência, os suecos conservaram seu crânio por mais de um século e meio.

Fonte: Revista Super Interessante

terça-feira, 17 de junho de 2014

A psicanálise ensina alguma coisa sobre o amor?


Entrevista com Jacques-Alain Miller, publicada na Psychologies Magazine de outubro 2008 (n° 278).

Psychologies: A psicanálise ensina alguma coisa sobre o amor?
Jacques-Alain Miller: Muito, pois é uma experiência cuja fonte é o amor. Trata-se desse amor automático, e freqüentemente inconsciente, que o analisando dirige ao analista e que se chama transferência. É um amor fictício, mas é do mesmo estofo que o amor verdadeiro. Ele atualiza sua mecânica: o amor se dirige àquele que a senhora pensa que conhece sua verdade verdadeira. Porém, o amor permite imaginar que essa verdade será amável, agradável, enquanto ela é, de fato, difícil de suportar.

Psychologies: Então, o que é amar verdadeiramente?
Jacques-Alain Miller: Amar verdadeiramente alguém é acreditar que, ao amá-lo, se alcançará a uma verdade sobre si. Ama-se aquele ou aquela que conserva a resposta, ou uma resposta, à nossa questão “Quem sou eu?”.

Psychologies: Por que alguns sabem amar e outros não?
Jacques-Alain Miller: Alguns sabem provocar o amor no outro, os serial lovers – se posso dizer – homens e mulheres. Eles sabem quais botões apertar para se fazer amar. Porém, não necessariamente amam, mais brincam de gato e rato com suas presas. Para amar, é necessário confessar sua falta e reconhecer que se tem necessidade do outro, que ele lhe falta. Os que crêem ser completos sozinhos, ou querem ser, não sabem amar. E, às vezes, o constatam dolorosamente. Manipulam, mexem os pauzinhos, mas do amor não conhecem nem o risco, nem as delícias.


Psychologies: “Ser completo sozinho”: só um homem pode acreditar nisso…
Jacques-Alain Miller: Acertou! “Amar, dizia Lacan, é dar o que não se tem”. O que quer dizer: amar é reconhecer sua falta e doá-la ao outro, colocá-la no outro. Não é dar o que se possui, os bens, os presentes: é dar algo que não se possui, que vai além de si mesmo. Para isso, é preciso se assegurar de sua falta, de sua “castração”, como dizia Freud. E isso é essencialmente feminino. Só se ama verdadeiramente a partir de uma posição feminina. Amar feminiza. É por isso que o amor é sempre um pouco cômico em um homem. Porém, se ele se deixa intimidar pelo ridículo, é que, na realidade, não está seguro de sua virilidade.


Psychologies: Amar seria mais difícil para os homens?
Jacques-Alain Miller: Ah, sim! Mesmo um homem enamorado tem retornos de orgulho, assaltos de agressividade contra o objeto de seu amor, porque esse amor o coloca na posição de incompletude, de dependência. É por isso que pode desejar as mulheres que não ama, a fim de reencontrar a posição viril que coloca em suspensão quando ama. Esse princípio Freud denominou a “degradação da vida amorosa” no homem: a cisão do amor e do desejo sexual.


Psychologies: E nas mulheres?
Jacques-Alain Miller: É menos habitual. No caso mais freqüente há desdobramento do parceiro masculino. De um lado, está o amante que as faz gozar e que elas desejam, porém, há também o homem do amor, feminizado, funcionalmente castrado. Entretanto, não é a anatomia que comanda: existem as mulheres que adotam uma posição masculina. E cada vez mais. Um homem para o amor, em casa; e homens para o gozo, encontrados na Internet, na rua, no trem…


Psychologies: Por que “cada vez mais”?
Jacques-Alain Miller: Os estereótipos socioculturais da feminilidade e da virilidade estão em plena mutação. Os homens são convidados a acolher suas emoções, a amar, a se feminizar; as mulheres, elas, conhecem ao contrário um certo “empuxo-ao-homem”: em nome da igualdade jurídica são conduzidas a repetir “eu também”. Ao mesmo tempo, os homossexuais reivindicam os direitos e os símbolos dos héteros, como casamento e filiação. Donde uma grande instabilidade dos papéis, uma fluidez generalizada do teatro do amor, que contrasta com a fixidez de antigamente. O amor se torna “líquido”, constata o sociólogo Zygmunt Bauman. Cada um é levado a inventar seu próprio “estilo de vida” e a assumir seu modo de gozar e de amar. Os cenários tradicionais caem em lento desuso. A pressão social para neles se conformar não desapareceu, mas está em baixa.
  


Psychologies: “O amor é sempre recíproco”, dizia Lacan. Isso ainda é verdade no contexto atual? O que significa?
Jacques-Alain Miller: Repete-se esta frase sem compreendê-la ou compreendendo-a mal. Ela não quer dizer que é suficiente amar alguém para que ele vos ame. Isso seria absurdo. Quer dizer: “Se eu te amo é que tu és amável. Sou eu que amo, mas tu, tu também estás envolvido, porque há em ti alguma coisa que me faz te amar. É recíproco porque existe um vai-e-vem: o amor que tenho por ti é efeito do retorno da causa do amor que tu és para mim. Portanto, tu não estás aí à toa. Meu amor por ti não é só assunto meu, mas teu também. Meu amor diz alguma coisa de ti que talvez tu mesmo não conheças”. Isso não assegura, de forma alguma, que ao amor de um responderá o amor do outro: isso, quando isso se produz, é sempre da ordem do milagre, não é calculável por antecipação.


Psychologies: Não se encontra seu ‘cada um’, sua ‘cada uma’ por acaso. Por que ele? Por que ela?
Jacques-Alain Miller: Existe o que Freud chamou de Liebesbedingung, a condição do amor, a causa do desejo. É um traço particular – ou um conjunto de traços – que tem para cada um função determinante na escolha amorosa. Isto escapa totalmente às neurociências, porque é próprio de cada um, tem a ver com sua história singular e íntima. Traços às vezes ínfimos estão em jogo. Freud, por exemplo, assinalou como causa do desejo em um de seus pacientes um brilho de luz no nariz de uma mulher!


Psychologies: É difícil acreditar em um amor fundado nesses elementos sem valor, nessas baboseiras!
Jacques-Alain Miller: A realidade do inconsciente ultrapassa a ficção. A senhora não tem idéia de tudo o que está fundado, na vida humana, e especialmente no amor, em bagatelas, em cabeças de alfinete, os “divinos detalhes”. É verdade que, sobretudo no macho, se encontram tais causas do desejo, que são como fetiches cuja presença é indispensável para desencadear o processo amoroso. As particularidades miúdas, que relembram o pai, a mãe, o irmão, a irmã, tal personagem da infância, também têm seu papel na escolha amorosa das mulheres. Porém, a forma feminina do amor é, de preferência, mais erotômana que fetichista : elas querem ser amadas, e o interesse, o amor que alguém lhes manifesta, ou que elas supõem no outro, é sempre uma condição sine qua non para desencadear seu amor, ou, pelo menos, seu consentimento. O fenômeno é a base da corte masculina.


Psychologies: O senhor atribui algum papel às fantasias?
Jacques-Alain Miller: Nas mulheres, quer sejam conscientes ou inconscientes, são mais determinantes para a posição de gozo do que para a escolha amorosa. E é o inverso para os homens. Por exemplo, acontece de uma mulher só conseguir obter o gozo – o orgasmo, digamos – com a condição de se imaginar, durante o próprio ato, sendo batida, violada, ou de ser uma outra mulher, ou ainda de estar ausente, em outro lugar.


Psychologies: E a fantasia masculina?
Jacques-Alain Miller: Está bem evidente no amor à primeira vista. O exemplo clássico, comentado por Lacan, é, no romance de Goethe, a súbita paixão do jovem Werther por Charlotte, no momento em que a vê pela primeira vez, alimentando ao numeroso grupo de crianças que a rodeiam. Há aqui a qualidade maternal da mulher que desencadeia o amor. Outro exemplo, retirado de minha prática, é este: um patrão qüinquagenário recebe candidatas a um posto de secretária. Uma jovem mulher de 20 anos se apresenta; ele lhe declara de imediato seu fogo. Pergunta-se o que o tomou, entra em análise. Lá, descobre o desencadeante: ele havia nela reencontrado os traços que evocavam o que ele próprio era quando tinha 20 anos, quando se apresentou ao seu primeiro emprego. Ele estava, de alguma forma, caído de amores por ele mesmo. Reencontra-se nesses dois exemplos, as duas vertentes distinguidas por Freud: ama-se ou a pessoa que protege, aqui a mãe, ou a uma imagem narcísica de si mesmo.


Psychologies: Tem-se a impressão de que somos marionetes!
Jacques-Alain Miller: Não, entre tal homem e tal mulher, nada está escrito por antecipação, não há bússola, nem proporção pré-estabelecida. Seu encontro não é programado como o do espermatozóide e do óvulo; nada a ver também com os genes. Os homens e as mulheres falam, vivem num mundo de discurso, e isso é determinante. As modalidades do amor são ultra-sensíveis à cultura ambiente. Cada civilização se distingue pela maneira como estrutura a relação entre os sexos. Ora, acontece que no Ocidente, em nossas sociedades ao mesmo tempo liberais, mercadológicas e jurídicas, o “múltiplo” está passando a destronar o “um”. O modelo ideal do “grande amor de toda a vida” cede, pouco a pouco, terreno para o speed dating, o speed loving e toda floração de cenários amorosos alternativos, sucessivos, inclusive simultâneos.

Psychologies: E o amor no tempo, em sua duração? Na eternidade?
Jacques-Alain Miller: Dizia Balzac: “Toda paixão que não se acredita eterna é repugnante”. Entretanto, pode o laço se manter por toda a vida no registro da paixão? Quanto mais um homem se consagra a uma só mulher, mais ela tende a ter para ele uma significação maternal: quanto mais sublime e intocada, mais amada. São os homossexuais casados que melhor desenvolvem esse culto à mulher: Aragão canta seu amor por Elsa; assim que ela morre, bom dia rapazes! E quando uma mulher se agarra a um só homem, ela o castra. Portanto, o caminho é estreito. O melhor caminho do amor conjugal é a amizade, dizia, de fato, Aristóteles.

Psychologies: O problema é que os homens dizem não compreender o que querem as mulheres; e as mulheres, o que os homens esperam delas…
Jacques-Alain Miller: Sim. O que faz objeção à solução aristotélica é que o diálogo de um sexo ao outro é impossível, suspirava Lacan. Os amantes estão, de fato, condenados a aprender indefinidamente a língua do outro, tateando, buscando as chaves, sempre revogáveis. O amor é um labirinto de mal entendidos onde a saída não existe.

Entrevista realizada por Hanna Waar

Tradução de Maria do Carmo Dias Batista

sexta-feira, 13 de junho de 2014

A V Semana de Filosofia da Faculdade Católica de Uberlândia  que tem como tema "Ética e Cidadania", foi aberta com a palestra do professor Humberto Aparecido Guido/UFU. As apresentações de trabalhos serão feitas na parte da manhã dessa quinta e sexta-feira. A semana se encerrará, nessa sexta-feira as 19hs no auditório da faculdade, com a palestra do professor Ibraim Vitor de Oliveira/PUC Minas, com o tema: Ética e filosofia contemporânea.



segunda-feira, 9 de junho de 2014

Valesca Popozuda: Grande Pensadora Contemporânea

Pesquisando vários sites de conteúdo de filosofia, achei no youtube uma vídeo aula do blog: http://www.filosofiahoje.com/ que fala sobre a polêmica envolvendo a Valesca Popozuda como pensadora.
Vale a pena conferir as aulas desse canal, que oferece aulas com conteúdos clássicos de filosofia como também, aulas com temas atuais.


segunda-feira, 2 de junho de 2014

V Semana da FILOSOFIA da Faculdade Católica de Uberlândia


A inscrição é individual, podendo ser realizada  na secretaria da Faculdade Católica de Uberlândia: 
Rua Padre Pio, 300 – Bairro Osvaldo Rezende – CEP: 38.400-386. 
Telefone: (34) 3236-0336.

Inscrições: Doação deve ser entregue no dia do evento (1 Cobertor ou 1 Agasalho ou 1 kg de Alimento não perecível ou 1 pasta de dente + 2 sabonetes)

*As inscrições para o evento, sem apresentação de trabalho, encontram-se abertas no período de 13 /05/14 a 11/06/14.

*Para apresentação de trabalho, as inscrições serão no período de 13/05/2014 a 08/06/2014.

As modalidades de apresentação de trabalhos podem ser nas formas de comunicação oral ou de pôster, tanto no período da manhã quanto à noite serão aceitas as duas modalidades. É necessário indicar um eixo temático que se aproxime do tema da comunicação ou do pôster.

Cada pesquisador poderá apresentar até (no máximo) dois trabalhos, sendo que as mesmas deverão ter, obrigatoriamente, um orientador, no caso de alunos da graduação e pós-graduação. Cada trabalho deverá ter no máximo (4) pesquisadores, incluindo o orientador. Vale ressaltar que tanto na forma de comunicação oral quanto pôster, faz-se necessário apresentar o resumo.

*Os resumos devem ser apresentados no seguinte formato: 

Fonte Arial, tamanho 12, espaço entre linhas simples, contendo, no mínimo, 200 palavras e, no máximo, 250. Título centralizado e em negrito. Alinhado à direita, devem constar o (s) nome(s) do(s) autor(es), da instituição e o(s) e-mail; abaixo do(s) nome(s) do(s) autor(es), o orientador e instituição. O resumo deve ser escrito em parágrafo único e alinhamento justificado.

OBS: SOMENTE SERÃO PUBLICADOS OS RESUMOS QUE FOREM ENVIADOS ATÉ O DIA 04/06/2014.

O resumo deve ser enviado para o seguinte e-mail: semanadafilosfia@gmail.com

terça-feira, 27 de maio de 2014

O papel da repressão na sociedade

O seguinte artigo tem por objetivo desenvolver o conceito de “repressão” tendo por base a conceitualização dada a partir das obras, “O Mal estar da civilização” de Sigmund Freud e “Eros e Civilização” de Hebert Marcuse, explicitando o que o psicanalista Dr. Sigmund Freud e o filósofo Hebert Marcuse pensam acerca da repressão e suas respectivas perspectivas e abordagens.
    1. Freud: O Mal Estar na Civilização
O Mal-Estar na Civilização foi escrito por Freud em 1930 sendo parte da coletânea de textos que marcam uma nova fase no seu pensamento, na qual ele se distancia dos seus estudos clínicos, centrados no indivíduo, para pensar questões relativas à humanidade, à relação indivíduo e sociedade.
Freud não distingue civilização de cultura, ele define civilização sendo tudo que difere o homem da vida animal, que o afasta da sua natureza. Em o “O Mal-Estar da Civilização” (1930) Freud apresenta o fato de a cultura produzir um mal-estar nos seres humanos. Sendo assim, para o bem da sociedade o indivíduo é sacrificado. Para que a civilização possa se desenvolver o homem tem que pagar o preço da renúncia da satisfação pulsional.
Freud assevera que a civilização tem como tarefa evitar o sofrimento e oferecer segurança, colocando o prazer em segundo plano. Em função do fato da satisfação pulsional ser sempre parcial as possibilidades de felicidade tornam-se restritas.
A Libido reprimida assume três modalidades de manifestação:  princípio de destruição, agressividade e realização do prazer (nazismo, fascismo, massacres, destruição da natureza...).
As pulsões agressivas do homem encontrariam limites, de acordo com Freud, quando a agressividade não pode ser liberada, então ela é internalizada, dirigida ao próprio ego. Assim, uma parte do ego se coloca contra o resto do ego, na forma de superego. É a partir do conceito de superego que Freud passa a desenvolver o termo sentimento de culpa, apontado por ele como um aspecto central da relação do indivíduo com a cultura.
Denomina-se como sentimento de culpa a tensão entre o ego e o superego, onde existiria uma necessidade de punição.
Há uma estreita relação entre a civilização e o sentimento de culpa. A civilização só alcança o objetivo de manter os seres humanos ligados através de um crescente fortalecimento do sentimento de culpa, desenvolvendo um superego cuja influência produz a evolução cultural.
A civilização desempenha o papel repressor, uma função de restrição sobre o ser humano. É esta função restritiva que garante a ultrapassagem de um estado primitivo de relação social para o estado de sociedade, preservando a manutenção e o desenvolvimento da civilização ao longo da história da humanidade.
Por fim, para Freud, a civilização é construída sobre a renúncia do homem a pulsão.

   2. Hebert Marcuse: Eros e Civilização
O autor de Eros e Civilização, Herbert Marcuse, foi um dos integrantes da Escola de Frankfurt e herdeiro de uma corrente de tradição marxista, que após sofrer abalos nas suas esperanças revolucionárias como resultado do apoio do proletariado alemão ao fascismo e a não ocorrência da revolução proletária, vão buscar uma reanálise da tese marxista.
Marcuse apresenta a repressão como um conjunto de restrições e de imposições que têm como finalidade obter e conservar a dominação. É um fenômeno sócio-político. Na teoria freudiana, a contenção do princípio do prazer pelo de realidade tinha um pressuposto: os seres humanos vivem em estado de penúria e precisam trabalhar para sobreviver. É preciso, portanto, que a libido não só seja reprimida para que energias se dirijam ao trabalho, mas também que o prazer aprenda a protelar-se e, em certos casos, a suportar frustrações definitivas. O trabalho podia, simultaneamente, tomar o lugar da libido para fins sociais úteis e podia também ser uma sublimação da libido, um meio para satisfazê-la indireta ou simbolicamente.
Para analisar a sociedade moderna, Marcuse reformulou e ampliou os conceitos freudianos para analisar seus componentes históricos e sociais, em que sua visão é voltada para o aspecto social.
O excesso de repressão á Eros e o crescente fortalecimento do sentimento de culpa conduziriam a sociedade a inverter o processo de repressão (esta sociedade repressora estaria criando os germes de sua própria destruição.
         Um recalque imposto pela sociedade é para que o trabalho seja aceito como valor e virtude central, sendo que, ocorre a dessexualização e deserotização do indivíduo – “destruindo” as múltiplas zonas erógenas que possui afirmando que qualquer estímulo a elas é imoral, perverso e criminoso –, reduzindo a sexualidade então a mera cópula com fins reprodutivos.
Por fim, para Marcuse, repressão é um conjunto de restrições e imposições que auxiliam a “domesticação” do Homem para o convívio em sociedade, indo além do recalque e da Contenção do Princípio de Prazer por exigências do Princípio de Realidade de Freud, nos quais há simplesmente uma demanda de sobrevivência do indivíduo – já na Repressão apresentada por Marcuse, a finalidade não é simplesmente a conservação da integridade e existência do indivíduo, mas da sociedade em primeiro lugar.

        Considerações finais
Pode-se fazer uma relação entre a teoria de Freud e de Marcuse no que diz respeito à repressão e suas consequências na sociedade. Foram apresentadas e abordadas as duas linhas teóricas que leva a correlação entre as teorias no que se diz respeito à repressão e sociedade.
Para Freud a diferença entre princípio de prazer e princípio de realidade corresponde à diferença entre um comportamento não reprimido e um comportamento reprimido. O princípio de desempenho marcuseano é a atual forma do princípio de realidade, sua atual forma histórica. Ele é característico do sistema capitalista, pois exige uma mais variada forma de repressão para manter a dominação.
Conclui-se que em Eros e Civilização, Marcuse se utiliza de conceitos psicanalíticos para uma melhor compreensão da repressão sexual, utilizada por nossa sociedade para sua auto-conservação e Sigmund Freud em “O Mal Estar da Civilização” apresenta fundamentos para a interpretação de Marcuse, ambos com perspectivas diferentes, sendo Freud uma perspectiva clínica e Marcuse uma perspectiva social.

terça-feira, 13 de maio de 2014

O mito da caverna

O Mito da Caverna, ou Alegoria da Caverna, foi escrito pelo filósofo Platão e está contido em “A República”, no livro VII. Na alegoria narra-se o diálogo de Sócrates com Glauco e Adimato. É um dos textos mais lidos no mundo filosófico.
Platão utilizou a linguagem mítica para mostrar o quanto os cidadãos estavam presos a certas crendices e superstições. Para lembrar, apresento uma forma reelaborada do mito. A história narra a vida de alguns homens que nasceram e cresceram dentro de uma caverna e ficavam voltados para o fundo dela. Ali contemplavam uma réstia de luz que refletia sombras no fundo da parede. Esse era o seu mundo. Certo dia, um dos habitantes resolveu voltar-se para o lado de fora da caverna e logo ficou cego devido à claridade da luz. E, aos poucos, vislumbrou outro mundo com natureza, cores, “imagens” diferentes do que estava acostumado a “ver”. Voltou para a caverna para narrar o fato aos seus amigos, mas eles não acreditaram nele e revoltados com a “mentira” o mataram.
Com essa alegoria, Platão divide o mundo em duas realidades: a sensível, que se percebe pelos sentidos, e a inteligível (o mundo das ideias). O primeiro é o mundo da imperfeição e o segundo encontraria toda a verdade possível para o homem. Assim o ser humano deveria procurar o mundo da verdade para que consiga atingir o bem maior para sua vida. Em nossos dias, muitas são as cavernas em que nos envolvemos e pensamos ser a realidade absoluta.
Quando aplicada em sala de aula, tal alegoria resulta em boas reflexões. A tendência é a elaboração de reflexões aplicadas a diversas situações do cotidiano, em que o mundo sensível (a caverna) é comparado às situações como o uso de drogas, manipulação dos meios de comunicação e do sistema capitalista, desrespeito aos direitos humanos, à política, etc. Ao materializar e contextualizar o entendimento desse mito é possível debater sobre o resgate de valores como família, amizade, direitos humanos, solidariedade e honestidade, que podem aparecer como reflexões do mundo ideal.
É perfeitamente possível relacionar a filosofia platônica, sobretudo o mito da caverna, com nossa realidade atual. A partir desta leitura, é possível fazer uma reflexão extremamente proveitosa e resgatar valores de extrema importância para a Filosofia. Além disso, ajuda na formulação do senso crítico e é um ótimo exercício de interpretação de texto. A relevância e atualidade do mito não surpreende: muitas informações denunciam a alienação humana, criam realidades paralelas e alheias. Mas até quando alguns escolherão o fundo da caverna? Será que é uma pré-disposição ao engano ou puro comodismo? O Mito da Caverna é um convite permanente à reflexão.