segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Descartes e a questão mente-corpo


Matéria

A maioria das terapias integrativas, muito em voga nos dias de hoje, investiga nas perturbações da alma as causas do surgimento das doenças do corpo. Pressupõe-se que os sintomas patológicos do organismo seriam apenas a manifestação ou a expressão de distúrbios que se encontram no domínio da mente, da alma e do espírito. Essas terapias estão baseadas em uma interação nada simples entre corpo e alma. Muitos filósofos se dedicaram a resolver essa questão desafiadora. O filósofo francês René Descartes (1596-1640) não foi apenas um deles, seu trabalho influenciou profundamente a filosofia e a ciência da sociedade contemporânea.
Descartes postulava que, além de Deus, o universo era constituído por outras duas substâncias. Uma delas era a res extensa (do latim, “coisa extensa”). A matéria que conhecemos e, mais especificamente, o corpo seriam modificações dessa substância. Assim, o corpo pode ser medido e calculado, pois possui extensão. Outra característica importante do corpo é o movimento: o sangue circula, os músculos se flexionam e se estendem. Por fim, como substância extensa, o corpo não pensa. O pensamento é uma operação que nunca pode ser atribuída ao corpo. Para Descartes, onde não houver alma, não há pensamento.

Pensamento e dualismo

A outra substância era a res cogitans (do latim, “coisa pensante” ou alma). A alma foi caracterizada por Descartes como algo imaterial e, portanto, sem extensão. Por esse motivo, a largura, o comprimento e a profundidade são medidas que não podem ser aplicadas à alma. Ela também foi caracterizada como uma substância pensante, mas, ao contrário do que frequentemente se concebe nos dias de hoje, pensar não era somente raciocinar. Pensar também é ser afetado de alegria, sofrer com uma frustração ou desejar realizar uma atividade para adquirir prazer. A divisão ou dicotomia entre alma e corpo, elaborada por Descartes, é conhecida como dualismo cartesiano.
Essa teoria não se preocupou apenas em definir a substância pensante e a substância extensa, mas também em explicar como uma age sobre a outra. Como é possível que a alma, substância imaterial e sem uma extensão espacial, tenha qualquer poder sobre o corpo, constituído de matéria e com contornos espaciais claramente delimitados? Descartes também questionava o seguinte: se o corpo é matéria, como pode ele afetar a alma, que não possui contornos espaciais claramente definidos? Sendo duas substâncias totalmente diferentes, como a alma e o corpo podem interagir entre si? Segundo Descartes, a alma está vinculada ao corpo de dois modos.

Alma, corpo e glândula pineal

Em primeiro lugar, por não possuir extensão (vimos que a alma não é material), ela está unida ao corpo todo e não apenas a alguma região em particular. Em segundo lugar, de acordo com Descartes, a alma exerce suas funções, mais particularmente por meio de uma glândula do cérebro: a glândula pineal, órgão intermediário que torna possível a interação entre a alma e o corpo. Duas propriedades desse órgão explicariam sua função de intermediário entre a alma e o corpo: unidade e mobilidade. Segundo Descartes, ela seria um única e capaz de reunir as percepções “duplas” provenientes dos órgãos dos sentidos. As imagens visualizadas pelos dois olhos ou os sons percebidos pelos dois ouvidos, por exemplo, encontrariam sua unidade nessa glândula.
Porém, ela também é, segundo Descartes, um órgão móvel, o que a torna capaz de afetar e de ser afetada pelos espíritos animais. Para o filósofo, os espíritos animais são elementos orgânicos responsáveis pela transmissão de movimentos e de sensações, algo equivalente aos impulsos neuroelétricos nos dias de hoje. A interação entre alma e corpo, proposta pelo dualismo cartesiano, entretanto, apresenta um grave problema. Sabemos o que ocorre no caminho que vai do mundo exterior até os sentidos da visão e desses até a glândula pineal. Os objetos exteriores afetam os órgãos dos sentidos, que transmitem imagens até a glândula pineal por meio dos espíritos animais. No entanto, continuamos sem saber como a alma, substância imaterial e sem extensão, pode perceber imagens materiais projetadas na glândula pineal. Como se realiza esse “salto” entre a alma e a glândula pineal, órgão do corpo humano?

Ciência e esoterismo

Segundo problema. De acordo com Descartes, a alma “percebe” as imagens projetadas na glândula pineal. Mesmo que seja possível que uma substância pensante (alma) perceba imagens projetadas em uma substância material (glândula pineal), não sabemos quais são os processos que ocorrem no interior da alma para que as imagens sejam percebidas por ela. Atualmente, algumas leituras do que Descartes escreveu sobre a glândula pineal descambam para o esoterismo. Porém, também já se sabe hoje que ela, nos vertebrados, é fonte de melatonina, hormônio derivado do triptofano (C11H12N2O2), aminoácido cristalino que regula o ciclo de sono. A produção desse hormônio pela glândula pineal está diretamente ligada à ausência de luz, ou seja, ela só acontece quando fechamos os olhos. Não acreditamos que, com essas observações, a questão da interação entre a alma e o corpo esteja plenamente resolvida. Ao contrário, depois de Descartes, muitos outros filósofos e cientistas se debruçaram sobre esse tema, tão instigante e tão complexo. Nossa intenção é simplesmente apontar para a riqueza do debate em torno do dualismo cartesiano.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Identidade gay e a tolerância

   

Nesta época de luta pelos direitos dos homossexuais, em que tantas conquistas se fazem notar, a ponto dos preconceitos serem considerados antiquados e muitos atestarem uma evolução no que tange ao olhar da sociedade em relação aos gays, cabe uma pergunta delicada: vencidos os embates externos (contra preconceituosos, homofóbicos e dogmáticos), o que dizer então dos inimigos internos? A luta dos homossexuais seria apenas contra entidades "lá fora"? Conquistaram os militantes uma assim dita "identidade gay"? Muitas opiniões sobre este assunto são possíveis. E o que nos diriam estes que são dois dos mais importantes filósofos franceses da pós-modernidade: Michel Foucault e Gilles Deleuze?

    A partir das perspectivas assimiladas ao longo da obra foucaultianodeleuziana, podemos também dizer, conforme explica o antropólogo Felipe Areda, que ninguém "nasce" homem, mas sim que todos nos tornamos homens, numa busca constante. A dita virilidade masculina representa o investimento numa rede relacional: busca- se o reconhecimento da masculinidade. Esta virilidade é uma ética, uma constante inquietude de si. Ao contrário do que pregam alguns militantes gays, o sexo não nasce feito. Nem mesmo "nasce-se gay", na medida em que a singularidade homossexual, como toda e qualquer singularidade humana, demanda contínua construção, desconstrução, reconstrução. Não se trata, portanto, de lutar por uma identidade no sentido de "ser idêntico a", ou seja, "seguir um modelo pré-estabelecido". O pensamento de Foucault e Deleuze opõe-se à idéia de seguir modelos, sejam eles quais forem, o que termina conduzindo a uma dolorosa liberdade: a liberdade de um contínuo criar, de responsabilizar-se por si mesmo, fazendo de si uma obra de arte singular e única. Um total contraponto à idéia de seguir um modelo pré-estabelecido que tenha a pretensão de estabelecer uma "identidade". Tal perspectiva é ao mesmo tempo libertária e angustiante.

    É importante salientar que, ainda conforme Areda, se o sexo é definido como uma divisão entre gêneros, todo sexo e toda sexualidade é heterossexual, no sentido de que "hetero" significa "diferente", ou seja, todo relacionamento sexual entabulado com um ser diferente de mim, seja ele um homem ou uma mulher, será hetero, pois o sujeito se faz homem na medida em que faz do outro um... outro. Essa divisão, existente no imaginário masculino, está longe de ser igualitária, ao contrário, é hierarquizada. Através do ato sexual, os sujeitos são inscritos numa hierarquia, territórios são demarcados, corpos e sujeitos são heterossexualizados: eu sou o homem, você é a mulher.

A partir das descrições históricas do pensador Paul Veyne, ao relatar os hábitos sexuais dos antigos gregos, podemos afirmar que até mesmo as ditas relações "homo" da antiguidade estavam longe de serem "relações entre iguais". Elas eram heterossexuais, na medida em que o homem mais velho, o erastes, exercia sobre o efebo impúbere, ou eromenos, um poder, e uma hierarquia era estabelecida. Uma relação "homo", na antiguidade ou na modernidade, num sentido semântico do termo, envolveria dois sujeitos que fossem considerados iguais (sejam eles machos ou fêmeas), sem hierarquias de subjugador e subjugado. Seria isso possível, ou mesmo real, no chamado "mundo gay"? Para responder a esta pergunta, julgamos necessário antes navegar em outros oceanos reflexivos.

   Ao que parece, segundo Areda, o discurso heteronormativo, esta assim chamada "matriz hegemônica de inteligibilidade", tem o poder de penetrar até mesmo o universo gay, atravessando todas as relações e adequando tudo o que encontra a uma lógica hegemônica. A mesma misoginia que cria o discurso homofóbico sobrevive nessa divisão tão solidamente estruturada por discursos culturais dentro dos guetos gays, criando até nos relacionamentos mais íntimos barreiras identitárias poderosíssimas. A intolerância, pretensamente apontada pelos militantes gays no que eles chamam de "totalitarismo heteronormativo", parece ser uma pálida sombra se comparada à intolerância que subjaz nos próprios guetos homossexuais sob os mais diversos aspectos que serão expostos ao longo deste artigo: o ódio aos travestis, o desprezo aos sexualmente passivos, o horror aos afeminados, como se "ser gay" significasse necessariamente seguir um modelo identitário pré-formado: ser homossexual é possível, contanto que o sujeito siga a cartilha. E a cartilha dita que todos sejam másculos e se comportem bem. Não se trata, obviamente, de uma cartilha escrita, mas fica patente no discurso presente tanto entre heterossexuais quanto homossexuais, em que se vaticina que "ser gay é possível, contanto que o cara seja macho e se dê ao respeito".
Vale a pena questionar: existe, de fato, um exemplo de tolerância? Houve tal exemplo em algum momento da história humana que poderia ser seguido como um modelo? E o que Foucault, Deleuze e Veyne pensam a respeito de seguir modelos históricos passados, conforme propõem alguns militantes?

   É assaz comum, no que concerne aos argumentos de alguns militantes gays acerca da homossexualidade, referir-se - ingenuamente - à antiga Grécia como um exemplo espetacular de civilização tolerante para com a prática homoerótica, considerando a civilização judaico-cristã como atrasada em relação à realidade homossexual. A partir desta comparação histórica, evoca-se a idéia de um relativismo moral e questionam-se as bases do preconceito moderno. Todavia, muitos militantes parecem ignorar que, no que tange à antiga Grécia, temos interdições tão claras quanto as interdições atuais, muito embora sejam interdições diferentes. Conforme discorre Foucault ao longo da sua obra, não é interessante tomarmos outra época como um modelo, pois não há um valor exemplar em um período que não seja o nosso próprio. Deleuze valida esta afirmação, ao sustentar em sua obra Conversações que Foucault detestava retornos: falamos do que vivemos. A história não diz o que somos, não estabelece a nossa identidade, diz apenas aquilo que estamos em vias de diferir. Paul Veyne emite um pensamento similar em O Último Foucault e sua Moral, ao dizer que o que se opõe ao tempo, assim como à eternidade, é a nossa atualidade.

      Fazer uma "arqueologia gay", portanto, não é necessariamente voltar- se para o passado. Deleuze aponta em Conversações para uma arqueologia do presente, em que tomamos as coisas para extrair delas as suas visibilidades. Não se trata, em absoluto, de procurar um modelo dito ideal que sirva como norma moral para os gays, mas - retomando Nietzsche - descobrir como a operação artística da vontade de potência permite a invenção de novas possibilidades de vida: um "ser gay" que se constrói, se inventa, um "ser" enquanto verbo atuante em nosso tempo, jamais como substantivo-modelo de uma época passada.

     Para Foucault, Deleuze e Veyne, não se trata de seguir um modelo, mas de criar um modo de vida gay que admita a pluralidade.

Fonte: http://filosofiacienciaevida.uol.com.br/ESFI/Edicoes/22/artigo87205-1.asp